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Com recorde de foliões e de investimentos, Rio vive um carnaval sem igual

Uma multidão como nunca antes vista é esperada nos tão aguardados blocos de rua, que abrem espaço a personagens que dão um toque todo especial à folia

Por Paula Autran, Kamille Viola
17 fev 2023, 07h00

Lançada há meio século, a música Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua, do cantor e compositor capixaba Sérgio Sampaio, jamais refletiu com tanto ímpeto o clima de um Carnaval quanto neste 2023. Nos dois últimos anos, a pandemia ainda avançava, e a folia generalizada que tradicionalmente toma as ruas da cidade teve de esperar. Pois com tanta demanda represada a expectativa é que 5 milhões de pessoas engatem na mais democrática das festas momescas — a dos blocos, aberta a quem tiver boas doses de energia. Se a estimativa se confirmar, será um número recorde, 20% superior ao de 2020, segundo a Riotur. “A rua é o lugar da fantasia, do ir e vir, da multiplicidade. E o que estamos vendo nos ensaios e primeiros desfiles é a explosão do desejo de ocupar este espaço”, avalia a jornalista e pesquisadora Rita Fernandes, presidente da Associação de Blocos da Zona Sul, de Santa Teresa e do Centro, a Sebastiana, que reúne catorze agremiações, como Simpatia é Quase Amor, Suvaco do Cristo e Monobloco.

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Nesta festa que se espera superlativa, apenas esses três cortejos somados devem atrair às ruas mais de 1 milhão de foliões, entre cariocas e turistas. É cerca de um quinto da turma que se deixará levar pelos 415 blocos autorizados pela prefeitura em 456 desfiles — engrenagem que contribui decisivamente para um incremento de 1 bilhão de reais na economia do Rio. A estimativa considera também os chamados blocos livres, que, mesmo sem a chancela das autoridades, brotam a cada ano sempre com um nome mais irreverente que o outro — em 2023, deu-se a estreia, por exemplo, do Geleia da Shakira, uma referência à cantora colombiana, que descobriu a traição do marido, o craque Gerard Piqué, após notar que uma geleia havia sido consumida enquanto ela estava fora de casa (e ele não gosta do doce). Noutros tempos, os desfiles não oficiais chegaram a ser podados pela prefeitura, mas a orientação mudou. “Blocos são como algumas Sapucaís em movimento, o que dá mais trabalho, claro, mas a cidade está monitorada. Este é um Carnaval para as pessoas voltarem a se manifestar. Repressão zero”, afirma o presidente da Riotur, Ronnie Aguiar.

Para que tamanho agito conte com boa infraestrutura, foi necessário investimento recorde em 34 000 banheiros químicos, 5 000 garis, 3 000 operadores de trânsito, 2 000 guardas municipais e 220 ambulâncias. A conta da festa fechou em 39 milhões de reais, um aumento relevante em relação a 2020, quando foram depositados 25 milhões de reais na folia. Responsável pela produção da festa de rua há doze anos, a Dream Factory acertou cinco cotas de patrocínio, a principal delas com uma cervejaria. Mais quatro empresas contribuem, pela primeira vez, para embalar a farra, entre as quais a Kwai, rede social de vídeos curtos, que levará às ruas um carro de maquiagem itinerante para os foliões. “As marcas entenderam que esse é o Carnaval da vida real, ao vivo. Era o momento de se posicionarem fora das telas, em sintonia com o que as pessoas estão buscando no pós-pandemia”, avalia Duda Magalhães, CEO e sócio da Dream Factory, que replicou o modelo do nosso Carnaval de rua em cidades como São Paulo e Belo Horizonte.

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(Fernando Maia/Riotur)

Entre os blocos cariocas, cerca de 70% são das zonas Norte e Oeste. Estas costumam ser, porém, agremiações menores e mais familiares. Os outros 30% desfilam na Zona Sul e no Centro, onde se concentra a maior fatia dos foliões. Com tanta gente espremida em um mesmo lugar, a prefeitura se mexeu, desde o último Carnaval, para transferir uma parte da celebração para bairros com avenidas largas, como a Barra, desafogando assim as regiões mais saturadas. Também foi criado no Centro um circuito para os oito megablocos da cidade — o Bloco da Preta, que tradicionalmente sacode 250 000 pessoas no fim de semana anterior às datas oficiais da festa pagã, foi cancelado em razão do tratamento médico por que passa a cantora. Com os remanejamentos, 94 desfiles ocorrerão neste ano na Zona Sul, contra os 110 que saíram em 2020, e o Centro se tornou o bairro com o maior número de cortejos, 53.

arte Carnaval

A farra chega ao ápice na terça-feira de Carnaval, o dia com previsão de mais blocos, quando 59 agremiações darão continuidade a um enredo que começou a ser escrito no século XVII, com a chegada ao Brasil do entrudo, festa portuguesa em que os foliões vestiam fantasias, dançavam e jogavam uns nos outros limões de cheiro, pequenas bolas de cera com água perfumada dentro. De acordo com historiadores, os primeiros registros de blocos carnavalescos licenciados pela polícia no Rio surgiriam em 1889, um ano após a abolição da escravatura, reforçando o caráter libertário da folia nas ruas, que desde o início tem os foliões como protagonistas, sejam eles músicos, pernaltas, produtores ou simplesmente leigos em estado de pura alegria. Na dura tarefa de pinçar nesta entusiasmada multidão personalidades que imprimem um estilo único e marcante à festa de rua, VEJA RIO chegou a seis figuras — e há muitas mais — que retratam a alegria de ser do Carnaval. Elas já estão prontas para colocar o bloco na rua.

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PEQUENA GIGANTE

Raquel Potí
(João Luís Caetano/Divulgação)

Se há cerca de uma década a ala de pernaltas era raridade na folia carioca — e hoje é quase que onipresente —, muito disso se deve a Raquel Potí, 39 anos. Pioneira, ela é uma referência na modalidade, no Brasil e no mundo. Pelas suas oficinas, criadas há oito anos, passaram mais de 1 000 alunos só no Rio, que formaram alas de diversos blocos na cidade. Há três anos, recebe todo mês alunas francesas para sua oficina. Ela própria desfila em mais de dez cortejos. Com 1,55 metro de altura, apoiada em uma perna de pau de 1,10 metro, costuma estampar reportagens com suas fotos pela elegância e destreza com que se equilibra. Foi em 2009, quando o companheiro morreu de câncer, que conheceu a folia de rua carioca. Acabou se tornando rainha da bateria do Carmelitas, ocupando a posição por alguns anos. Até que teve contato com a perna de pau e, tempos depois, passou a ministrar aulas. Raquel conta que, em 2013, havia três blocos com pernaltas. No ano seguinte, após sua oficina, o número havia dobrado, e não parou de crescer. Hoje, são incontáveis os blocos com artistas do gênero. “Antigamente, um bloco era a banda e os foliões. Hoje, as pessoas se manifestam nas mais variadas linguagens”, comemora. “Eu entrei no Carnaval para me salvar de uma dor profunda, ele me abraçou e me mostrou uma nova possibilidade de vida, um novo mundo.” Vale vê-la em ação.

FANFARRA CARNAVALESCA

André Ramos
(André Rola/Divulgação)

Um dos elementos fundamentais para o Carnaval de rua ter o perfil de hoje foi a existência da Orquestra Voadora. Saxofonista e compositor do grupo, André Ramos, 39, é um dos fundadores da fanfarra que inspirou a formação de blocos com sopro e percussão Brasil afora. Tudo começou de forma despretensiosa: músicos de cortejos como Songoro Cosongo e Céu na Terra, ele e seus amigos resolveram formar uma banda para tocar o ano inteiro. O passo decisivo para se juntarem de vez foi uma festa da escritora e atriz Elisa Lucinda, onde estrearam. “A partir dali, a gente começou a pesquisar essa formação de sopros e percussão e ver quanto é versátil e quanto permite tocar tudo que é tipo de música”, recorda. Logo começaram a fazer ensaios no jardim do MAM, em 2008, abertos para outros músicos. E aí foi chegando gente, de instrumentistas experientes a iniciantes — que pediam que eles criassem oficinas, lançadas em 2013 no Circo Voador. “Desde o primeiro ano, foi efervescente”, conta André. A partir da própria oficina, pela qual passaram cerca de 2 000 pessoas, novas fanfarras foram surgindo, algumas em atividade até hoje. André toca em muitos blocos, como o Mini Seres do Mar, o Gigantes da Lira e o Elefante Brass, além do que ele chama de blocos aleatórios, que vão aparecendo espontaneamente. “Acho que esse vai ser o maior Carnaval de todos os tempos”, aposta.

MULHERES NA MÚSICA

Thais Bezerra
(Samanta Toledo/Divulgação)

A folia é também um espaço para romper barreiras. E não é de hoje que as mulheres vêm agitando suas bandeiras e lutando por mais protagonismo na festa, ainda que sem alarde. Percussionista desde 1998, a maestrina Thais Bezerra, 40 anos, foi convidada, uma década mais tarde, a fundar o Multibloco e virou a primeira mulher a comandar uma bateria de um cortejo de rua no Rio. No início, eram cerca de trinta músicos — hoje são 250. Em 2015, ela estava entre as criadoras das oficinas do Bloco da Terreirada, que também rege. Atualmente, duas de suas ex-alunas se encontram à frente de baterias de blocos: Raquel Carvalho, do Vem Cá, Minha Flor, e Ju Magaldi, do Lamba Bloco. Sua história se funde com o período de renovação do Carnaval de rua, por volta de 2010, embora não tenha sido planejado. “Sou uma pessoa que simplesmente vai fazendo”, diz. Aos poucos, foi ficando claro como sua presença ali era algo que as foliãs ansiavam havia algum tempo. Em 2020, realizou um encontro percussivo para mulheres e pensou que iriam umas vinte. Apareceram 300. “Fiquei muito emocionada e pensei: ‘Olha só como as pessoas acreditam no meu trabalho’ ”, recorda. E pontua: “As bandas de Carnaval são praticamente formadas por homens. A minha reflexão deste ano de retomada é a luta por mais espaço para as mulheres na música.” Está aí uma boa causa.

INVASÃO ESTRANGEIRA

Laurence Meaux
(André Rola/Divulgação)

Não foram apenas as fronteiras nacionais que o Carnaval carioca ultrapassou. A magia da festa que toma as ruas chegou a outros países e transformou em foliões turistas como a designer belga Laurence Meaux, 33 anos, que veio morar no Rio em 2021. Já no ano seguinte, ela curtiu o “Carnabril”, a folia fora de época realizada no feriado de Tiradentes, e se apaixonou, como diz. Em julho daquele ano, Laurence ingressou no bloco Mulheres Rodadas e conheceu Elisa Caldeira, com quem passou a ter aulas. A partir daí, ela resolveu repassar o conhecimento acumulado a outras estrangeiras. Começou a ministrar aulas e logo fundou o bloco As Gringas Fodas, que por enquanto só tem pernaltas. Toda semana, elas acompanham algum outro bloco. Os próximos passos são ensaiar com uma banda para desfilar primeiro fora de temporada, depois no Carnaval de 2024. Com o cortejo, ela busca dar a mulheres de distintas nacionalidades a mesma oportunidade que teve de entrar no mundo da folia de rua. Laurence — que no Rio tem como apelido Regina — conta que várias mulheres lhe perguntam como fazer para integrar esse universo. “Para quem não é do Carnaval, para quem não conhece ninguém de dentro, é difícil mesmo saber”, reconhece ela, que agora domina com maestria esse circuito carnavalesco.

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ABRINDO CAMINHOS

Julinho da Glória
(Ana Carvalho/Divulgação)

O Carnaval de rua é capaz de conquistar até o mais mal-humorado dos representantes da espécie. O produtor cultural Julio Barroso, o Julinho da Glória, 55 anos, era daqueles que odiavam a folia. Sempre que podia, viajava para fora do Rio nesta época do ano. Até que, em 2009, cruzou com um bloco tocando uma música do nigeriano Fela Kuti e aquilo o tocou. A banda emendou com Michael Jackson, ele aprovou e atentou para o estandarte, onde se lia: Orquestra Voadora. Ficou interessado e, meses depois, foi a uma festa em que a banda tocaria. No ano seguinte, lá estava ele, o ex-mal-humorado dos carnavais, no cortejo. Em 2011, convidado para trabalhar no Céu na Terra, estreou como puxador de bloco: é ele quem abre caminho entre foliões e ambulantes para que a banda possa passar. Deu tão certo na função que hoje está no Tambores de Olokun, Cordão do Boitatá, Charanga Talismã e Vem Cá, Minha Flor. Todo mundo sabe de quem se trata. “Eu fico até surpreso como as pessoas me ouvem e respeitam no meio da folia. Quando eu falo para o bloco parar, ele para. Quando peço para andar, ele segue em frente”, conta. “Uma vez, quando eu puxava o Boi Tolo, o chefe da operação do Choque de Ordem me viu, respirou aliviado e disse: ‘Ainda bem que é você puxando o bloco’.” Aí a polícia abriu o caminho e a multidão avançou feliz.

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UM BLOCO POR DIA

Bárbara Carneiro Rola
(André Rola/Divulgação)

Se o Rio não é das cidades mais fáceis de circular para quem possui alguma deficiência física, no Carnaval o ir e vir se torna ainda mais complicado. Mas isso nunca foi empecilho para a estudante Bárbara Carneiro Rola, 17 anos, filha do fotógrafo André Rola. Desde pequena, ela era levada pelo pai aos blocos. Acabou tomando gosto e não parou mais. Os diurnos são os preferidos, e é sempre um por dia. A agenda é farta: o pré-Carnaval tem Céu na Terra e Boitatá, domingo é dia de desfiles do Boi Tolo, na segunda o embalo é no Vem Cá, Minha Flor — e por aí vai. Bárbara alerta: o Carnaval é pensado como se pessoas com deficiência não existissem, as calçadas são esburacadas, as rampas têm batente no final, muitos bueiros não possuem tampa e, para piorar, os foliões jogam lixo na rua, o que prende a roda de sua cadeira. Tudo isso faz com que ela precise de ajuda em variadas situações. Mesmo com os desafios, todos os anos está de volta à rua vestida a caráter para curtir os cordões. “Gosto da magia, da explosão de cores, das pessoas felizes, da diversidade que só o Carnaval tem”, celebra a jovem, confiante nos avanços que o tempo traz.

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