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Viagem ao inferno

O crack chega à classe média carioca e transforma a vida de seus usuários em um pesadelo em que o descontrole, a decadência e as doenças decorrentes do vício podem levar à morte em menos de cinco anos

Por Sofia Cerqueira
Atualizado em 2 jun 2017, 13h01 - Publicado em 27 ago 2014, 17h42

As imagens normalmente associadas aos usuários de crack lembram as de zumbis que povoam filmes de terror ? sujeitos sujos, maltrapilhos, de olhar perdido, vagando a esmo pelas ruas, prestes a irromper em ataques de violência. Como habitantes de um mundo paralelo, esses homens, mulheres e crianças se entocam sob viadutos, à beira de vias expressas ou junto às linhas ferroviárias com o único objetivo de consumir a droga, nem que para isso seja necessário roubar ? e, em casos extremos, até matar. O que o senso comum não costuma conceber é a ideia de essas mesmas pessoas circularem por apartamentos de Ipanema, faculdades renomadas ou festas descoladas. Afinal de contas, o crack costuma ser visto como um mal que só atinge miseráveis e marginais. Trata-se, obviamente, de uma ilusão. É fato que esse nefasto subproduto da cocaína já está entranhado em praticamente todas as classes sociais, e os números comprovam isso. Nas clínicas particulares dedicadas a tratar dependentes químicos, onde um mês de internação chega a custar 20?000 reais, os consumidores do entorpecente já perfazem 10% da clientela. A porcentagem triplica quando se fala em usuários que já experimentaram o composto, não o usam regularmente, mas podem se tornar viciados compulsivos em pouco tempo. “O crack não é mais a droga segregada que se imaginava”, atesta a psiquiatra Analice Gigliotti, chefe do setor de dependência química da Santa Casa da Misericórdia e diretora da clínica Espaço Clif, em Botafogo, voltada para o atendimento privado.

Tomás Rangel
Tomás Rangel ()

Produzido a partir da combinação de pasta-base de coca com bicarbonato de sódio e solventes, o crack é considerado uma espécie de versão mais poderosa da cocaína. O preço quase irrisório ? uma pedra pode ser conseguida por apenas 5 reais ? tornou-o particularmente popular entre os usuários de baixa renda. Seus efeitos, porém, agradam aos viciados em geral, principalmente os que já são dependentes de outras substâncias tóxicas. A potência se explica pelo mecanismo de ação no organismo ? assim que chega aos pulmões, ele entra na corrente sanguínea e atinge o cérebro quase instantaneamente. A sensação de prazer é fugaz e se transforma rapidamente em desejo irrefreável de novas doses. Cada organismo processa o composto de uma maneira, mas é consenso que ele causa dependência nas primeiras experiências. Fissurado pelas pedras, consumidas em cachimbos improvisados em copos plásticos ou latas de alumínio, o dependente logo perde o controle da situação e embarca em um ciclo autodestrutivo. “Passava vários dias nas favelas atrás da droga e cheguei a ficar sete horas seguidas fumando crack sob um viaduto em Benfica”, conta a estudante A.C., de 24 anos. Para conseguir custear o vício, a moça, criada em Ipanema, em um apartamento que ocupava um andar inteiro, começou a se prostituir, até que foi internada pela família. “Normalmente, os pacientes acabam caindo nas cracolândias ou se transformando em mendigos domésticos”, resume o psiquiatra Alessandro Alves, da Clínica Jorge Jaber, especializada em dependência química.

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Como em todo vício, há uma gama de fatores que podem levar uma pessoa a torrar até o último centavo ou perder qualquer resquício de dignidade por uma dose de crack. Dificuldade de lidar com frustrações, desajuste familiar, componentes genéticos, fuga da realidade e busca incessante de prazer são algumas explicações. De acordo com uma pesquisa da Fiocruz, o Brasil tem 370?000 viciados em crack nas capitais. O número representa 35% do total de consumidores de drogas ilícitas, excluída a maconha. Outro estudo do Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), da Universidade de São Paulo, comprova que o crack está presente em todos os segmentos socioeconômicos. “Já fui a festas em apartamentos da Avenida Atlântica em que várias pessoas usavam crack”, conta o designer e músico C.A., de 35 anos, que, depois de três internações, se diz “limpo” há um ano. No auge do consumo, ele chegou a pagar a dívida com o traficante oferecendo-lhe uma estada em seu apartamento em Copacabana, durante o réveillon. “Ele veio com a família inteira”, recorda.

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Embora seja relativamente comum em eventos sociais, o crack tem como peculiaridade levar o dependente a se isolar ou procurar viver entre outros adictos. Em geral, o dependente não consegue manter uma vida social nem profissional. “Seu desespero em obter mais droga se torna tamanho que tudo passa a girar em torno disso”, afirma Marcos Miceli, psiquiatra do setor de álcool e droga do Instituto Philippe Pinel. P.C., de 42 anos, foi criado no Leme e lutava jiu-jítsu na juventude. Mais velho, tornou-se dono de duas oficinas especializadas em conserto de motos da marca americana Harley-Davidson. Viciado em cocaína, consumiu a versão mais barata por acaso, quando procurava pelo pó em uma favela. “O carregamento não havia chegado e eles me ofereceram crack”, recorda. Meio ano depois, já era um dependente grave. “Certa vez, passei dez dias sem tomar banho nem comer direito, fumando pedra atrás de pedra. Assaltei pessoas com faca e vendi tudo o que tinha em casa, até as cortinas”, conta o ex-em­presário, que vivia em um confortável imóvel com piscina no Recreio.

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Considerada uma das substâncias mais devastadoras que existem, o crack surgiu na década de 80 em bairros pobres de Nova York e Los Angeles, nos Estados Unidos. O nome em inglês se deve ao estalo peculiar que a substância petrificada faz ao ser fumada. No Brasil, os primeiros registros remontam ao início dos anos 1990, em São Paulo. No Rio, demorou um pouco mais. O antropólogo Paulo Storani, especialista em segurança, explica que, a princípio, os líderes das facções criminosas cariocas acreditavam que o crack não era tão lucrativo quanto a cocaína. Em meados dos anos 2000, as pedras passaram a ser vistas pelos traficantes como opção para viciados irrecuperáveis e sem dinheiro. “Hoje é tão fácil ter acesso ao crack quanto à maconha ou à cocaína”, reforça Ana Cecilia Marques, presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (Abead). Moradora da Gávea, a comerciante M.S. travou seu primeiro contato com a droga em 2012, quando passou a frequentar a favela do Jacarezinho em busca de cocaína. Desde então foram quatro internações para se livrar do vício. “A loucura é tamanha que eu deixei um apartamento de quatro quartos para passar seis dias em uma favela, vivendo em meio a lixo, baratas e ratos”, recorda ela.

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Vencer a compulsão não é fácil. Envolve a família, acompanhamento médico, grupos de ajuda mútua, mas, obrigatoriamente, depende do empenho do usuário. Embalado pela sensação artificial de euforia e poder gerada pela substância, o consumidor se vê preso ao vício. Especialistas afirmam que o uso da droga pode levar à morte em até cinco anos. Por atacar diretamente o aparelho respiratório e elevar a pressão arterial, o crack costuma provocar enfisema pulmonar, infarto e derrame. Perda de memória e dificuldade de raciocínio estão entre as sequelas do seu uso. “O nível de deterioração psíquico e orgânico é tão grave que o tratamento acaba sendo muito longo e difícil”, ressalta Elizabeth Carneiro, psicóloga do Espaço Clif. O tempo médio de internação de um paciente grave é de seis meses, o dobro do período dos viciados em outras substâncias. Como atestam os depoimentos de quem viveu esse pesadelo, é como um doloroso mergulho em um poço sem fundo.

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