Lei que autoriza festas em áreas residenciais de Búzios ameaça paz
Três ações civis públicas tramitam na Justiça contra responsáveis pelos imóveis; prefeito da cidade propõe lei para regulamentar eventos no município
Aquela Búzios idílica, colônia de pescadores que encantava turistas em busca de natureza preservada e praias paradisíacas, está virando um inferno para moradores e proprietários de casas de veraneio que se encantaram por este sonho de cidade. O motivo, segundo eles, é uma indústria nada silenciosa que se instalou na região e só tem crescido, principalmente nos últimos meses, quando a pandemia de Covid-19 começou a dar trégua. É a indústria de festas, como as de casamento, que inclui serviços que vão de cabeleireiros a cerimonialistas, bufês e empresas de segurança. Toda uma estrutura para eventos que vem sendo realizados em áreas residenciais e de proteção ambiental.
“Estou desesperado! Na minha vizinhança tem acontecido mais de uma vez por semana, reunindo até 400 pessoas. Essas áreas não estão preparadas para receber caminhões trazendo banheiros químicos”, diz o dono de um imóvel na Praia da Ferradura. Ali, das cerca de 40 casas de frente para a orla, pelo menos três já se tornaram “festeiras”. “Não sou contra festas, mas tem que ter hora e lugar! A cidade não comporta isso. A pessoa incomodada acaba tendo apenas duas saídas: vender o imóvel ou transformá-lo em mais uma casa de festas. É um pesadelo”, diz ele.
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No dia 2 de fevereiro, o prefeito Alexandre Martins (Republicanos) enviou à Câmara Municipal, em regime de urgência, um projeto de lei que dispõe sobre o regramento para realização de eventos sociais e casamentos no município. Na justificativa, ele diz que a lei atualmente em vigor restringe o mercado, prejudicando o sustento das famílias. Entre as mudanças propostas estão limite para a emissão de ruídos, disponibilidade de vagas e recolhimento de lixo.
O projeto também prevê que eventos com mais de cem convidados deverão contar com serviço de empresa especializada em segurança privada, e que se forem realizados em área particular devem ser credenciados na Secretaria municipal de Ordem Pública. Os que não forem credenciados devem pagar uma taxa. Mesmo áreas públicas, como cais, deques, praças e afins, de até 70m2, podem sediar eventos com até quatro horas de duração, mediante prévia emissão de autorização.
“É claro que esse mercado tem que ser regulado. Mas a intenção do prefeito é transformar imóveis em área residencial em casas de festas, e isso é inaceitável!”, reclama o morador da Ferradura. A questão já chegou à Justiça, em pelo menos três ações civis públicas.
A Associação de Moradores da Ferradura (AMA Ferradura), por exemplo, ajuizou uma ação civil pública em novembro do ano passado, pedindo que Ferradura Inn Exclusive, Serenitas Beach House e a proprietária de um terceiro imóvel particular transformado em casa de festas sejam condenados a “se absterem de adotar o uso nocivo das propriedades nas quais desenvolvem atividades comerciais” e ao pagamento de 100.000 reais a título de danos morais coletivos.
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Antes de entrar com a ação cível, a associação contratou o advogado criminalista Eric Cwajgenbaum para analisar a questão sob o aspecto criminal. “Entre os ilícitos penais que em tese estavam sendo cometidos estão crimes contra o meio ambiente, além da contravenção penal da perturbação do sossego alheio“, explica ele, que providenciou a elaboração de um laudo pericial que comprovasse a questão da poluição sonora. No documento de cerca de vinte páginas, anexado ao processo, consta que foram registrados em um dos locais 129,80 decibéis às 20h39 do dia 10 de setembro.
Além da música alta, entre 17h e 3h, também foram descritos problemas como barulho de objetos sendo descarregados após o encerramento da festa, colocação de gerador de energia sobre a calçada e acúmulo de lixo colocado sobre a calçada. Em janeiro, oficiais de Justiça já estiveram em duas das casas. No Ferradura Exclusive, foram relatadas irregularidades como a inexistência de alvará, gerador de energia e banheiros químicos no interior da casa e som em altura capaz de incomodar a vizinhança. Já a Serenitas estava fechada ou alugada a terceiros que não permitiram a entrada do oficial.
Segundo a jornalista Monica Casarin, que é vice-presidente da Associação de Moradores e Caseiros da Ferradura (Amoca) e conselheira municipal de Meio Ambiente da prefeitura, o problema começou por volta de 2006. Moradora da cidade desde 2000, ela conta que desde o início a vizinhança vem tentando conversar com o poder público: “O argumento da prefeitura era o de que não tinha o decibelímetro aferido pelo Inmetro nem curso específico para operar a ferramenta e medir o barulho. Como não houve reação, o problema foi se espalhando para outras praias. Virou um nicho. E tem muita gente vivendo disso”.
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Não por acaso, há duas outras ações civis públicas movidas pelo Ministério Público tramitando na Justiça. Ambas contra o Geribá Tennis Park, que pertenceria ao pai do prefeito. Ali teria ocorrido uma morte por esfaqueamento durante a festa do réveillon de 2022. Num dos processos, movido em novembro, o MP pediu uma liminar para que os réus fossem obrigados a não realizar mais atividades envolvendo sonorização até que fosse implementado um projeto de isolamento acústico.
A liminar foi indeferida a princípio, pois o juiz entendeu que não havia elementos técnicos para comprovar a intensidade dos limites sonoros. Ele determinou que isso fosse verificado por um oficial de justiça, que esteve no local durante a preparação para um evento que receberia 900 pessoas. O juízo reconheceu fortes indícios de que “a chancela da administração pública municipal aos eventos não tem presunção de veracidade, legitimidade, legalidade e impessoalidade que se espera dos atos administrativos”, deferindo a liminar. E determinou também a remessa dos autos ao Ministério Público de Cabo Frio para apuração de possíveis omissões municipais na fiscalização. Os réus apresentaram defesa, alegando a regularidade dos eventos em relação à documentação e limites sonoros. Eles recorreram ao Tribunal de Justiça do Rio, e foi concedida liminar, em recurso, para suspender a decisão do juiz.
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Na segunda ação, o Ministério Público requereu, em plantão judiciário, que na festa de réveillon os réus fossem obrigados a realizar medição acústica com a Secretaria de Meio Ambiente e que não pudessem mais realizar eventos a partir de 1º de janeiro sem projeto de isolamento acústico. Mas foi deferido somente o primeiro pedido.
Procurado para falar sobre o assunto, o prefeito Alexandre Martins respondeu por meio de nota. De acordo com ele, a prefeitura exerce um controle rígido sobre os eventos que acontecem no município e que o som só é permitido até 22h. “Nesses últimos meses, tivemos mais de 80 notificações, paralisando festas e eventos, coibindo o som alto, segundo a Secretaria de Ordem Publica”, escreveu, acrescentando que o projeto de lei que apresentou para regularizar as festas foi criado para que a prefeitura possa ter “um controle inicial” e “monitorar os eventos que anteriormente sequer eram cadastrados”. “Sabendo onde vão acontecer os eventos, a gente sabe onde a fiscalização tem que ir. Inclusive, a Defesa Civil vai começar a vistoriar os eventos com antecedência para que eles sigam todas as regras de segurança possíveis”.
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Embora perguntado sobre as ações judiciais que envolvem o Geribá Tennis Park, que seria de seu pai, ele não comentou o caso. Disse apenas que “os eventos são importantes para a cidade, principalmente os casamentos, que também são realizados lá no Tennis Park. Então, tentamos colocar uma harmonia para não quebrar a questão de economia”. A discussão segue quente no balneário. “Búzios sempre foi uma cidade que atraia turistas do Brasil e do mundo por suas belezas naturais e tranquilidade. Acabar com isso é acabar com a galinha dos ovos de ouro do município. A prefeitura está jogando no lixo todo o potencial da cidade”, disse outro morador incomodado pelo ruído das festas da Ferradura.