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Por Rafael Mattoso, historiador
Curiosidades sobre o subúrbio carioca
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A educação em perigo com a volta às aulas nos subúrbios

Reflexões importantes sobre a educação em tempos de pandemia

Por Rafael Mattoso Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 21 ago 2020, 10h35 - Publicado em 21 ago 2020, 00h50

É evidente que em meio ao contexto da crise que vivemos, as preocupações sobre como será o dia de amanhã se tornam inevitáveis. O futuro próximo parece depender da descoberta de um tratamento eficaz contra o coronavírus, da superação da recessão econômica, assim como dos resultados que as próximas eleições municipais podem trazer.

No cenário político, é curioso perceber que teremos uma provável disputa eleitoral entre o ex-prefeito Eduardo Paes e o atual Marcelo Crivella, que tentará a reeleição. Lembro que há quatro anos, a cidade estava em clima de campanha eleitoral, quando o bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus e sobrinho de Edir Macedo dizia: “Está chegando a hora de cuidar das pessoas.”

Infelizmente constatamos que tal afirmativa não se concretizou na prática, sobretudo no que diz respeito à eficiência das políticas públicas para a maioria da população, que ainda espera essa importante hora chegar em meio a uma pandemia. O surto de covid-19 e a aplicação da quarentena expuseram a fragilidade de nossa saúde e educação demonstrando a necessidade emergencial de maiores investimentos governamentais.

O isolamento social tem cada vez mais contribuído para evidenciar como a educação não se restringe ao ato de mandar os alunos cotidianamente para a escola. A realidade inexorável das aulas online trouxe novos dilemas e levantou importantes debates sobre o papel das tecnologias, sobre a importância do professor e da eficácia das metodologias de aprendizagem.

Toda essa discussão se faz imprescindível no exato momento em que o governo do estado do Rio acaba de publicar um decreto sobre retomada das aulas. O decreto parece desconsiderar a opinião da maioria dos brasileiros, cerca de 79% das pessoas que segundo pesquisa publicada em 17 de agosto pelo Datafolha, acreditam que a pandemia vai se agravar com a retomadas das atividades presenciais.

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A postura do próprio presidente da República parece desconsiderar a nota técnica da Fiocruz, que alerta para riscos, caso haja a volta às aulas. No dia 14 deste mês o presidente fez questão de comparecer à cerimônia de inauguração do colégio cívico-militar General Abreu, no Rocha, Zona Norte do Rio.

Para a Fiocruz, “a volta às aulas pode representar um perigo a mais para cerca de 9,3 milhões de brasileiros que são idosos ou adultos com problemas crônicos de saúde e que pertencem a grupos de risco. Isso porque eles dividem a mesma casa com crianças e adolescentes em idade escolar (entre 3 e 17 anos). A quantidade de pessoas que pode passar a se expor ao novo coronavírus foi calculada com base na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS 2013), que foi realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Laboratório de Informação em Saúde (LIS) da Fiocruz”.

Desenho criança na Serrinha (Fabricio Goyannes/Arquivo pessoal)

Segundo o professor Paulo Gomes Coutinho, do Ciep 313-Brizolão Rubem Braga e da Escola Municipal Sampaio Corrêa, existem questões fundamentais que deveriam ser pensadas antes da volta presencial. Entre elas estão o enfrentamento dos graves problemas sanitários nas favelas e comunidades periféricas e suburbanas, questões como a falta de água, esgoto, luz, coleta regular de lixo e planejamento na construção das moradias.

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Outra pergunta essencial é como voltar às aulas em um quadro que não apresenta redução de casos e mortes. É possível evitar o aumento, em larga escala, de pessoas (estudantes e responsáveis) circulando nos transportes coletivos pela cidade, e teremos pessoal com qualificação, treinamento e equipamento (EPIs) para ser disponibilizado nas escolas? O retorno das aulas agora atende aos interesses de quem?

Como professor, concordo integralmente com o companheiro de profissão Paulo Coutinho, principalmente quando afirma que “os espaços das escolas não estão preparados/adaptados para atender às exigências sanitárias impostas pela pandemia, como demarcação de salas, bebedouros, pátios, banheiros e refeitórios”.

Professores e funcionários vão acumular de forma precária, ilegal e com alto risco, mais funções para as quais não estão preparados – e não será com treinamentos virtuais que vamos superar essas carências.

A redefinição do calendário escolar ou a própria suspensão do ano letivo deve ser feita através de um diálogo aberto com a sociedade, abrindo espaço para a participação da comunidade escolar, em busca de resoluções que sejam mais sensatas e seguras.

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Para melhor entender o panorama histórico da educação no Brasil e sua relação com os subúrbios, pedimos ajuda ao professor Marcelo Gomes da Silva, do Departamento de Ciências da Educação da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc).

Marcelo aponta que o processo de escolarização brasileiro ocorreu no sentido de reproduzir a própria desigualdade social que assolou o país ao longo de sua história. Desde o período colonial até os dias atuais, é possível perceber marcas do “dualismo histórico da educação brasileira”, como definiu José Libâneo. Trata-se de uma escola do conhecimento, para os ricos, e uma escola do acolhimento social para os pobres.

Segundo o professor, desde o século XIX, foi consenso entre os governantes que a escola cumpria a função de civilizar a população brasileira. Além do Estado Imperial, atuaram neste processo, várias “forças educativas” da sociedade civil, associações, igrejas, etc. Em geral debateram e discutiram muitas “formas de educação”. Portanto, não é exclusividade do nosso tempo a disputa sobre qual escola ou qual ensino oferecer.

As pesquisas de Marcelo Gomes da Silva indicam que o debate sobre a instrução da população ganhou outros contornos a partir do contexto de encerramento da exploração oficial do trabalho escravo e da articulação do golpe republicano, a educação passa por uma reformulação (ao menos nos debates políticos), que representou uma tentativa de racionalização do ensino, porém não houve a preocupação em construir uma política efetiva que garantisse educação para todos.

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Deste modo, fica evidente a dimensão da desigualdade educacional, principalmente em regiões mais periféricas das cidades. Eram raros os espaços adequados ao ensino popular. Geralmente as “escolas” funcionavam em casas adaptadas, que não foram construídas para tal finalidade, onde faltavam, além de materiais didáticos, carteiras, mesas, lousas e, principalmente, professores.

Foto do aluno no Colégio Estadual Professor João Borges de Moraes (2019) (Pedro Henrique Diniz/Arquivo pessoal)

O início do século XX foi marcado por grandes transformações na cidade do Rio de Janeiro. Capital da República, a cidade passou por um processo de modernização, refletida na reestruturação ocorrida a partir das reformas urbanas. Esse processo desencadeou o reordenamento espacial da população pobre, que se deslocou em grande parte para outras localidades mais afastadas da região central.

A resposta a essa demanda envolveu um esforço que mobilizou vários setores da sociedade. Associações de trabalhadores e professores ofertaram cursos noturnos e abriram escolas nos subúrbios.

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É importante destacar que houve uma atuação por parte da população suburbana para que ocorressem aberturas de escolas em suas localidades. Essa demanda muitas vezes foi absorvida por instituições representativas dos trabalhadores, que via seu contingente aumentar juntamente com a ampliação da classe operária na primeira república, e passaram a disputar os modelos de escolas que queriam e desejavam aos seus. A escolarização no subúrbio não ocorreu sem um debate sobre que tipo de escola interessava à população, não foi um processo sem reflexões e disputas, muito menos sem a participação da sociedade civil e instituições representativas presentes nessas localidades.

Neste sentido, é importante termos a clareza do que vem sendo proposto nestes tempos de pandemia, do contexto dos sujeitos e da complexidade das relações escolares de cada localidade.

Por fim, vale muito destacar que parte das fotos que ilustram essa matéria foram produzidas pelos estudantes do Colégio Estadual Professor João Borges de Moraes, na Maré, durante oficinas do Projeto de Extensão Museu Nacional Vive, assim como um documentário que foi exibido como parte da mostra “Maré de Cultura”, em 2019. Realizado com apoio da equipe que conta com servidores do Museu Nacional e estudantes de graduação da UFRJ, o roteiro, as entrevistas, imagens e direção foram protagonizados pelos próprios estudantes do colégio e mostram um pouco da sua realidade, sonhos e expectativas.

Vale muito assistir ao resultado do trabalho que está disponível no canal do colégio no Youtube, com o link: https://bit.ly/MareDeSonhos

Para finalizar nossas reflexões trazemos mais uma boa dica, o livro “A educação do corpo nas escolas do Rio de Janeiro do século XIX” do professor Victor Andrade de Melo que está sendo lançado esta semana pela editora 7Letras.

Victor explica que desde o Império surgiram no Brasil as iniciativas pioneiras de ensino de práticas corporais institucionalizadas, em espaços escolares e não escolares, no meio civil e no militar. Em sintonia com as tendências europeias e ligadas à formação de uma elite (a princípio colonial, a partir de 1822 de caráter nacional), essas experiências se articulavam, na época, com as preocupações com a “educação physica”, termo que definia não só o ensino de exercícios físicos, como também as reflexões e intervenções que tinham por fim os cuidados com a saúde e a higiene.

Livro do professor Victor Melo da UFRJ (Editora 7Letras/Divulgação)

Este texto foi feito em parceria com Marcelo Gomes da Silva, professor do Departamento de Ciências da Educação – DCIE da Universidade Estadual de Santa Cruz/Uesc- Ilhéus-BA, com Paulo Gomes Coutinho, militante dos movimentos sindical (Sepe/RJ), cineclube, biblioteca e educação populares, professor de história do Ciep 313-Brizolão Rubem Braga e da escola municipal Sampaio Corrêa, além da revisão da jornalista Sandra Crespo.

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