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Por Analice Gigliotti, Elizabeth Carneiro e Sabrina Presman
Psiquiatria
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Donald Trump e a arte de saber perder

Postura do presidente americano diante da derrota revela sua imaturidade

Por Analice Gigliotti
Atualizado em 9 nov 2020, 12h54 - Publicado em 9 nov 2020, 09h45

Depois de longos dias de apuração, o candidato democrata Joe Biden foi anunciado o vencedor das eleições presidenciais americanas. Quebrando uma tradição de décadas dos pleitos majoritários nos Estados Unidos, Donald Trump não parabenizou o oponente e nem reconheceu a derrota publicamente, mais de 48 horas depois de o resultado ser confirmado. Como um menino mimado, Trump deve estar trancado na Casa Branca pensando em uma estratégia para assumir um fato que faz parte da vida de todos nós, e mais ainda dos que se lançam em disputas: perder.

A postura de Trump não chega a ser uma surpresa. Ele havia anunciado nas últimas semanas que, caso Biden ganhasse, levaria a apuração dos votos para a Justiça. Como a apuração ainda não foi concluída em alguns Estados, não sabemos se ele, de fato, irá levar sua derrota aos tribunais. O homem acostumado a gritar “Você está demitido!” no reality show de televisão se viu demitido por mais de 70 milhões de americanos. Porém, quanto mais tempo Donald Trump resiste em assumir que perdeu, mais patético é o papel que desempenha diante de seu povo e do resto do mundo.

O que Trump talvez não se dê conta é que a gente começa a perder desde que nasce. Choramos no nascimento porque perdemos o aconchego do útero. Seguramente não é um movimento fácil, mas é fundamental para se ganhar a vida. E esse é o movimento ao longo de toda a existência: quando saímos da escola para a faculdade, quando optamos por mudar de emprego ou de estado civil. Toda mudança em busca de um ganho traz também uma perda.Saber entregar-se às contrações do lugar estreito rumo ao lugar amplo é um processo assustador, avassalador e mágico”, afirma o rabino Nilton Bonder em seu belo livro “A Alma Imoral”. E assim seguimos, até a perda final: a morte.

É verdade que nem todas as perdas na vida são positivas. Quando se perde alguém que se ama, por exemplo. Num ano em que milhões de pessoas se viram obrigadas a enfrentar a perda de pessoas amadas para a Covid-19, a resistência de Trump em deixar o poder soa ainda pior aos ouvidos.

Os atletas – pessoas cuja profissão é essencialmente ganhar ou perder – trabalham em seu treinamento a aceitação da possibilidade de derrota, porque a incapacidade de lidar com a perda é absolutamente contraproducente: o jogador que não aceita a derrota como possibilidade real terá resultados piores. Quanto mais considera apenas a vitória, maior a chance de perdê-la. O bom e velho “jogar contra”. No entanto, se um atleta perde uma competição, mas consegue entender que por trás daquela derrota há um aprendizado, a perda passa a ganhar valor e sentido: é uma oportunidade de amadurecimento.

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Faltou a Donald Trump o saudável treinamento mental dos atletas. A respeito da possibilidade de perder, ele declarou à imprensa na semana passada: “Ganhar é fácil. Perder nunca é fácil. Para mim não é”. O que faz com que alguém não aceite perder é o valor que confere à própria perda. Onde que está o maior peso: naquilo que a pessoa não conseguiu ou no que já tem? No que foi perdido ou nas coisas boas que já conquistou e ainda pode vir a conquistar?

A dificuldade em aceitar derrotas é comum em alguns tipos de personalidade. São pessoas que foram muito mimadas ao longo da sua história; ou que compensaram dores e dificuldades da relação com os pais atrás de uma armadura que as protege de enfrentarem perdas para não expor grandes fragilidades internas.

O comportamento do presidente após a vitória de Biden é a síntese do pensamento da nossa cultura capitalista Ocidental – da qual Trump é um garoto propaganda orgulhoso. Somos preparados para não digerir bem perdas e derrotas, apenas ganhos e vitórias. Já a cultura Oriental, especialmente a budista, tem relação oposta com esses valores, calcando-se na impermanência e imprevisibilidade: perder ou ganhar são apenas dois lados da mesma moeda e ambas fazem parte da vida.

Joe Biden sabe bem disso. Ele já havia concorrido duas vezes à indicação para representar o Partido Democrata nas urnas em eleições prévias, mas perdeu nas primárias. A resiliência de Biden diante das perdas seguramente trouxe a ele crescimento, que agora o premia com a vitória. Biden não endureceu diante das derrotas, ele evoluiu até chegar ao seu objetivo.

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Segundo a autora Elisabeth Kubler-Ross, o luto tem cinco estágios: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação, nesta ordem. Se entendermos a derrota na eleição presidencial como um processo de luto – a morte de um projeto -, Trump ainda está oscilando entre as fases de negação, pedindo recontagem dos votos, e raiva, não admitindo a derrota.

Que o ego de Trump permita logo que ele chegue à fase final da aceitação, para que o mundo possa viver uma nova era menos preconceituosa, raivosa e bélica.

Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.

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