Coronavírus e a Escolha de Sofia
Decisões em políticas públicas consideram diversos aspectos como saúde, política e mercado
“Salvem vidas, não Wall Street” é o título do artigo que J. Larry Jameson, reitor da Universidade da Pensilvânia, publicou no jornal The New York Times. Em resumo, ele alerta para que os líderes políticos americanos resistam às pressões e não se preocupem agora com a abertura de escolas ou a retomada da vida econômica posto que nada disso acontecerá, de fato, até que a pandemia termine. Esse mesmo jornal anunciou hoje que o número de pessoas hospitalizadas no CTI em Nova York por Covid-19 chega a 840, um crescimento de 60% desde, pasmem, segunda-feira.
Artigo publicado ontem na renomada revista científica Science comprova a importância de medidas de isolamento social para contenção da pandemia na China. Além disso, já se sabe que as taxas de mortalidade da Covid-19 diferem de país para país não somente pelo número de idosos, mas também pela capacidade de tratamento do país.
Diante deste quadro, tentar trazer a vida à uma normalidade forçada, como propõe alguns líderes, pode significar expor milhões de pessoas ao risco. Por outro lado, é impensável imaginar que não haverá efeitos colaterais ao puxarmos o freio de mão do mundo de forma tão violenta, como está sendo feito. Trata-se de uma “Escolha de Sofia”, como no filme em que Meryl Streep precisa decidir qual dos dois filhos ela libertará dos campos de concentração.
Decisões em políticas públicas consideram diversos aspectos como saúde, política e mercado. Diante da afirmativa do presidente Trump em manter o país “aberto” e funcionando, o The Washington Post foi categórico. “Se fossem considerados apenas os aspectos de saúde, cigarros e refrigerantes provavelmente seriam ilegais”, cravou o jornal. Touché.
Mas as sociedades médicas e os mais abalizados cientistas são enfáticos ao afirmar que a maneira mais eficiente de evitar uma busca desenfreada por hospitais em um futuro breve é retardar ao máximo a contaminação neste momento. Caso contrário, em poucas semanas teremos um pico de demanda de atendimento e, como consequência, o colapso do sistema médico.
Como profissional de saúde, não posso deixar de me manifestar. Nesse embate entre milhões de reais e (muitas) milhares de vidas, não consigo deixar de visualizar os hospitais abarrotados, os corpos empilhados, numa espécie de genocídio de idosos e das classes menos favorecidas. Não consigo fechar os olhos. A economia é recuperável. Vidas não são.
Como psiquiatra, sei que há e ainda haverá mais sofrimento. Dos pequenos empresários, que talvez tenham que demitir seus funcionários. Das famílias desempregadas. A perda de parentes mortos. Os conflitos emocionais são muitos: a solidão, a ansiedade frente ao desconhecido, a obrigação de lidar com um inimigo invisível como o vírus, o insuportável tédio que já carregavam anteriormente, agora ampliado. Isso explica porquê, diante de tanta adversidade, muitas pessoas preferem romper o isolamento social. Na tentativa de estancar esses sentimentos, profissionais de saúde mental do Brasil e do mundo estão se voluntariando para atender de graça, pela internet.
Em breve veremos quem vai dominar as discussões impostas pelo coronavírus: a saúde ou a economia. Mas independente de quem ganhe, haverá sofrimento, quer Sofia escolha um filho ou outro. E, mais que nunca, a assistência em saúde mental continuará a ser fundamental.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.