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Blog do novelista Manoel Carlos
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Trivial variado

  Não sei se ainda está em uso esta expressão —trivial variado — para designar refeição rápida e de preço acessível. Até onde me lembro, o cardápio era anunciado numa lousa, o que nas escolas chamávamos de quadro-negro, com letras tortas, em giz branco, à porta dos restaurantes modestos, espalhados pelo centro da cidade e […]

Por fernanda
Atualizado em 25 fev 2017, 18h13 - Publicado em 13 mar 2015, 19h09

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Não sei se ainda está em uso esta expressão trivial variado — para designar refeição rápida e de preço acessível. Até onde me lembro, o cardápio era anunciado numa lousa, o que nas escolas chamávamos de quadro-negro, com letras tortas, em giz branco, à porta dos restaurantes modestos, espalhados pelo centro da cidade e pelos bairros populares, na São Paulo onde nasci e vivi por quarenta anos.

Uma São Paulo sem violência e que tinha na garoa de todas as tardes, alcançando o crepúsculo, uma de suas principais atrações. Leva o casaco, meu filho, que está garoando! Ainda ouço a voz da minha mãe, a linda e infeliz mãe que eu tive.Infeliz sem saber ou sem querer saber que o era.

Não expunha sua tristeza. Mas suspirava. Por causa disso percebi — desde muito cedo — quanto diz um suspiro que parece não dizer nada.

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Suspiro de mãe triste que não se queixa, muito diferente do que se exala por causa do amor contrariado, da saudade que se sente de pessoas queridas que morreram. Suspiro primo-irmão do último.

Não sei se é falta de atenção, mas não vejo mais ninguém suspirar, suspirar alto, um suspiro que parece tomar o lugar de lágrimas que engolimos para que não aflorem aos olhos e rolem pelo nosso rosto.  

Mas voltando ao trivial variado: compunha-se ele, basicamente, de arroz, feijão, batata, bife e um ovo frito. Sempre dava para negociar uma mudança: trocar o ovo, por exemplo, por uma salada de tomate. Esse era o trivial variado simples, num preço fixo ao alcance de todos. Mas também existia o trivial variado fino, de preço fixo mais alto, mas ainda assim acessível. Esse oferecia um prato diferente a cada dia. Não me lembro do cardápio de toda a semana, mas tenho certeza de que às quintas-feiras era o picadinho, às sextas o bacalhau à gomes de sá, aos sábados a feijoada e aos domingos o cozido português ou a macarronada.

Tanto num como noutro, as mulheres, fosse qual fosse a idade, bebiam guaraná e os homens, cerveja ou um copo de vinho de garrafão. Almocei muitas vezes nesses concorridos restaurantes, familiares como a casa de uma avó. Conheci o sabor do simples e do fino. Vem-me à memória do olfato o aroma que ainda provoca o meu apetite e desperta saudade da minha vida que ficou para trás. Fosse eu Proust, estaria correndo até hoje atrás do tempo perdido.

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Refeições regadas a muita risada. E como ríamos, meu Deus! Chorei pouco na juventude. E, ao contrário do que se poderia prever, nos piores momentos da minha vida eu nada chorei. Durante toda a semana muita coisa rolou na minha memória. Perdoem-me os prováveis leitores esse tempo de saudade que circula quase sempre pelo que escrevo, e também quase sempre com melancolia.

Estando às vésperas de mais um aniversário, foi inevitável a lembrança de um dos mais belos versos de Fernando Pessoa:

“No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, eu era feliz e ninguém estava morto”.  

Para encerrar, pergunto: a vida não é isto? Um trivial variado de emoções?

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