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Por Fabiano M. Serfaty, clínico-geral e endocrinologista, MD, MSc e PhD.
Saúde, Prevenção, Tratamento, Qualidade de vida, Bem-estar, Tecnologia, Inovação médica e inteligência artificial com base em evidências científicas.
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Covid-19: o que aprendemos de verdade e o que dizem os principais estudos?

Em entrevista, o médico intensivista e pesquisador Vicente Cés de Souza-Dantas fala sobre os desafios da pesquisa em meio à pandemia

Por Fabiano M. Serfaty com Vicente Cés de Souza-Dantas
Atualizado em 2 nov 2020, 10h49 - Publicado em 28 out 2020, 15h14

1) Como tem sido fazer pesquisa no meio da pandemia?
O Brasil, apesar da imensa capacidade para a realização de pesquisas, tendo profissionais altamente gabaritados e 70% da população brasileira utilizando o Sistema Único de Saúde (SUS), temos muita dificuldade ainda no entendimento da importância das pesquisas, especificamente na área médica, associado a entraves de estruturação, burocráticos e de financiamento.
A pandemia pôs o Brasil no foco mundial da infecção pela COVID-19, sendo atualmente o 3º país com o maior número de casos no mundo, o que vem estimulando redes nacionais de cooperação e projetos de pesquisa com alto padrão técnico.

2) Quais as maiores dificuldades enfrentadas pelos pesquisadores no Brasil?
Ainda falta uma estrutura profissional para a realização de pesquisas de alto padrão. Hoje a realização das pesquisas no Brasil depende basicamente: de financiamento público (CAPES, FAPERJ…), e em grande parte também das universidades públicas, o que foi extremamente afetado na política de ciência e tecnologia atual; de pesquisas relacionadas aos estudos de mestrado e doutorado, que são financiadas por bolsas, que também sofreram retrocesso durante o atual governo; e de algumas poucas instituições, localizadas principalmente na região sul-sudeste, que tem uma estrutura mais profissional, com verba própria para o financiamento dos projetos e dos profissionais necessários para a realização desses estudos.

3) Quais os principais estudos publicados no Brasil. Você poderia dizer o que cada estudo concluiu?
Através de um consórcio de pesquisa que reúne mais de 100 Centros de Terapia Intensiva (CTI) em todo o Brasil (BRICNET), foi idealizado o estudo Coalizão, com o intuito de realizar estudos com alto nível de evidência científica no contexto da pandemia mundial pelo COVID-19.
Inicialmente realizamos o Coalizão 1, que comparou em 600 pacientes com quadros leves de COVID-19, alocados aleatoriamente, o real papel da Hidroxicloroquina (HCQ) na infecção pelo SARS-Cov2. Concluímos que os pacientes que receberam a HCQ ou placebo tiveram o mesmo desfecho, isto é, a mesma chance de internação no CTI, de necessidade de oxigenioterapia ou de ventilação mecânica e de mortalidade. A grande diferença foi que os pacientes que utilizaram a HCQ, associada ou não a Azitromicina (um antibiótico que foi a figura principal do Estudo Coalizão 2) tiveram 15% a mais de chance de serem acometidos por um evento cardíaco. Já no Coalizão 2, estudamos os pacientes com quadros graves de COVID-19, e se o uso, ou não da Azitromicina (um antibiótico, que segundo a teoria do Dr. Didier, um
pesquisador francês, que desde o início da pandemia vem defendendo o uso de medicamentos que não foram projetados especificamente como antirretrovirais para o combate da infecção pelo COVID-19, baseado principalmente em dados in vitro) faria diferença no desfecho desses pacientes (mortalidade, tempo de ventilação mecânica, necessidade do uso de oxigênio (O2) e internação no CTI).

Mais uma vez concluímos que a adição da Azitromicina ao esquema terapêutico atual no tratamento da COVID-19 não trouxe qualquer benefício. Por fim, publicamos o Coalizão 3, que avaliou o uso de doses elevadas de um corticoesteróide, a Dexametasona, em pacientes com a Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo (SDRA), e quadros de pneumonia por COVID-19, muito graves, que necessitavam de ventilação mecânica e altas concentrações de O2. Nesse estudo especificamente, não encontramos diferença na mortalidade desses pacientes, mas os pacientes que utilizaram a Dexametasona necessitaram de menos dias de ventilação mecânica. A BRICNET ainda está totalmente ativa e atuante, com vário estudos em andamento, relacionados a infecção pelo COVID-19, tais como: o papel da anticoagulação nos pacientes com COVID-19; estudos da eficácia da HCQ em pacientes que não necessitam de internação hospitalar e estão assintomáticos ou pouco sintomáticos; um estudo avaliando o papel de um inibidor da Interleucina-6 (tentando parar a cascata inflamatória presente na infecção); a qualidade de vida a longo prazo nos pacientes após a infecção por COVID-19; e por fim o uso de antirretrovirais em doses usuais e doses que não são utilizadas atualmente para as doenças específicas a que essas medicações estão indicadas formalmente para avaliar seu efeito nos pacientes com
infecção pelo SARS-Cov2.

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4) Afinal, no cenário terapêutico para Covid-19 hoje, o que temos baseado em evidências?
Os trabalhos conduzidos ou que estão em andamento, que utilizaram antirretrovirais e anticoagulantes variados, antiparasitários, plasma de pacientes convalescentes do COVID-19, imunomoduladores, imunoglobulinas anti-SARS-Cov2 específicas e células-tronco mesenquimais: ou não foram trabalhos randomizados (isso é, com o maior grau de evidência possível); ou não tiveram um número suficiente de participantes alocados para dar poder estatístico ao estudo; ou ainda não foram publicados em revistas científicas de renome com processos sérios de revisões pelos pares (“peer-review”); ou por fim, não tiveram qualquer efeito benéfico nos pacientes infectados pelo SARS-COV2. Em termos de tratamentos baseados em evidência científica para a doença, o que temos no momento são 3 estudos clínicos randomizados: o primeiro, com o maior número de pacientes alocados, mostrou a diminuição da mortalidade em pacientes com alguma necessidade de oxigenioterapia utilizando doses baixas de Dexametasona por 10 dias (Estudo RECOVERY); um estudo espanhol que utilizou doses elevadas de Dexametasona em pacientes com SDRA e necessidade elevada de O2, mostrando a diminuição da mortalidade desses pacientes, assim como do tempo de ventilação mecânica; e por fim um estudo brasileiro (o Estudo CODEX), que também utilizou os mesmos critérios de
inclusão dos pacientes e dosagem da medicação do estudo espanhol, não mostrando diferença na mortalidade entre os grupos, mas sim um menor tempo de ventilação mecânica no grupo da Dexametasona.

5) Em termos de profilaxia. Há alguma medicação?
Infelizmente ainda não. Temos um estudo em andamento do projeto Coalizão, avaliando a eficácia da HCQ no tratamento precoce∕profilaxia da COVID-19 em pacientes assintomáticos ou pouco sintomáticos, sem necessidade de internação hospitalar, que ainda está em processo de recrutamento; e estudos começando a serem divulgados na forma de pre-prints, utilizando a Nitazoxanida, um antiparasitário, na avaliação da resolução precoce dos sintomas (em pacientes com sintomatologia leve e sem necessidade de internação hospitalar), assim como da redução da carga viral nesses pacientes após o uso da medicação. O que teríamos efetivamente que fazer seria identificar os pacientes assintomáticos com RT-PCR (exame de detecção molecular do SARS-Cov2) e conseguir isola-los, com isso diminuindo a transmissibilidade da doença e a chance da ocorrência de uma nova pandemia no Brasil (já que estamos em um período endêmico da doença no momento).
No entanto, esbarramos na questão financeira, uma vez que são exames caros e que não estão amplamente disponíveis; assim como na questão social: como isolar pessoas que muitas vezes moram em casas de um cômodo, com vários parentes, sem água
potável ou saneamento básico? Já existem projetos que estimaram que o percentual de pacientes em áreas carentes com RT-PCR positivo para o SARS-Cov2 é de cerca de 50%, sugerindo que ainda temos um percentual grande da população vulnerável a contrair a doença.
Outra questão importante é a contaminação pelo SARS-Cov2 dos profissionais de saúde (estimado em cerca de 40% em alguns estudos amostrais brasileiros) e de pacientes internados por outras doenças no ambiente hospitalar.

Para tentar evitar isso, as visitasde parentes aos pacientes estão proibidas, sendo as informações médicas prestadas por telefone. Em hospitais com estrutura adequada se permite 1 acompanhante por paciente que só pode ser trocado a cada semana e tanto o paciente, quanto o seu acompanhante, são testados na internação hospitalar e semanalmente. Todos os funcionários que ainda não tiveram a doença também são testados a cada 14dias, ou em caso de sintomas compatíveis com a infecção pelo COVID-19 e tenta-se alocar os funcionários que já foram contaminados em áreas não COVID, minimizando ainda mais o risco de contaminação dos pacientes. A grande esperança está no desenvolvimento das vacinas específicas para o SARS-Cov2. No momento, temos mais de 40 vacinas em teste em todo o mundo, muitas utilizando metodologias diferentes para tentar evitar a contaminação celular pelo SARS-Cov2. As vacinas em processo mais avançado de pesquisa são a vacina chinesa, a russa e a inglesa, no entanto, processos de investigação de eficácia e risco que normalmente durariam cerca de 10 anos, estão sendo realizados em períodos muito curtos, e nenhum desses pesquisadores já conseguiu publicar o estudo de fase 3 relacionado a qualquer uma dessas vacinas. Há ainda questões éticas temerárias, tais como expor pacientes após a vacinação (em fase experimental) a pacientes sabidamente contaminados com o SARSCov2, com risco real de contrair a doença e nenhuma garantia de imunidade. Se falarmos em 50% da população ainda com possibilidade de exposição a doença, estaríamos falando na necessidade da produção de 4 bilhões de doses de vacinas (se ficar definido a necessidade de mais de uma dose por paciente, talvez será necessário a produção de mais doses), isso sem falar que não sabemos se os pacientes que desenvolveram anticorpos para a doença (IGG) estão imunizados em caráterpermanente ou pode haver queda gradual da proteção conferida pelos anticorpos produzidos inicialmente. Então como estratégia de vacinação em massa, se alguma das vacinas em estágios mais avançados de desenvolvimento, mostrarem eficácia, provavelmente só conseguiríamos falar em imunização efetiva no ano de 2022. Por fim, temos que lembrar da possibilidade de ocorrerem mutações, como aconteceram com o vírus Influenza e o H1N1 (já temos mais de 120 mutações caracterizadas mundialmente com pouca significância clínica, mas 4 delas já mostraram o poder teórico de provocar reinfecções) e que as vacinas que estão sendo projetadas para os RNAs virais dessa pandemia, poderem não ser tão efetivas caso de fato ocorram mutações com novos mecanismos de infecção e maior potencial de contágio.

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6) Você poderia deixar uma mensagem para os profissionais que estão na linha de frente?
Em primeiro lugar enfrentamos uma pandemia de uma doença nova e de comportamento imprevisível, que evoluiu muito rápido e que nos levou a trabalhar muito mais do que estávamos acostumados, desenvolvendo estratégias de tratamento enquanto a doença evoluía e forçando as pesquisas a avançarem a ritmos alucinantes, nunca antes vistos. Diante disto, muitos profissionais tiveram Síndrome de “burn-out”, o que levou a alta incidência de afastamento das funções e a necessidade de apoio psicológico, além de devido ser uma doença nova e altamente contagiosa, muitos tiveram receio, e com razão, de se contaminar com o SARS-Cov2, uma vez que ninguém sabe ainda o
prognóstico da doença, mesmo em pacientes jovens e sem comorbidades. Outra novidade, foi o isolamento enfrentado pelos pacientes e pela a sua família, uma vez que as visitas foram proibidas, o contato médico passou a ser impessoal e por telefone, e todos os profissionais estavam com equipamentos de proteção individual, o que não permitia nem que os pacientes conhecessem e criassem laços com seus
cuidadores. Apesar das dificuldades impostas pela COVID-19, conseguimos nos organizar em muito pouco tempo, aprendemos a cada dia um pouco mais sobre o manejo dos pacientes infectados e o tratamento da COVID-19, melhorando o prognóstico dos pacientes mais
graves e principalmente conseguimos não nos desumanizar no meio desse processo, e dar suporte humanizado aos pacientes, mesmo em situação de isolamento familiar, e também as famílias, mesmo que sendo a distância.

 

> VICENTE CÉS DE SOUZA-DANTAS
> RESIDÊNCIA EM CLÍNICA MÉDICA – HSE
> RESIDÊNCIA EM CARDIOLOGIA – INC
> TE – AMIB
> MD EM ONCOLOGIA – INCA
> PhD EM CLÍNICA MÉDICA – UFRJ
> MÉDICO TERAPIA INTENSIVA – HUCFF UFRJ
> COORDENADOR PEMI – AMIB (HNMD)

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