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Por Alexandre Carauta, jornalista e professor da PUC-Rio
Pelos caminhos entre esporte, bem-estar e cidadania
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Na torcida pelo espírito das arquibancadas

Crônicas rodrigueanas e música de Caetano douram a fé nos carnavais filiados à graça do estar-junto

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Atualizado em 23 dez 2020, 21h47 - Publicado em 23 dez 2020, 21h03

DJ na pausa do café, arquibancada vazia, os velhos colegas emplacam a prosa:

“O tal de VAR vai tirar o nosso emprego”, queixa-se Almeida.

“Bobagem. O videoteipe continua burro, sem imaginação. Aí a gente entra em campo”, o amigo da gravata borboleta.

“Sei não. Os idiotas da objetividade armaram-se de tecnologia. Às vezes o jogo parece uma ultrassonografia intermitente. Já basta o parador que eu pego todos esses anos”.

“Falar nisso, como anda Irajá?”

“Não muda de assunto. A coisa está feia pro nosso lado”.

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“Calma, Almeida. Complexo de vira-lata não combina com você. Sem a gente, o futebol periga virar, como dizia o criador, uma esterilidade bonitinha. Uma fórmula matemática. Uma interminável reta sem vista pro mar”.

“Não exagera… Mas você tem razão: nenhuma devassa eletrônica ameaça o nosso pacto com o imponderável, a nossa habilidade de resguardar a mística do futebol, seus dramas, sua poesia, suas cores mais vivas”.

“Esse, sim, é o Almeida velho de guerra, que tantas aprontou com o meu Tricolor”.

“Olha quem fala. Nesse campeonato é você que anda impossível”.

“Podemos dizer que tenho me mantido ocupado… O preocupante, meu amigo, não é a radiografia asséptica do VAR. Sua precisão computadorizada jamais alcançará os dialetos mágicos do futebol. Nosso ganha-pão está garantido. Eu me preocupo, Almeida, é com a concorrência da realidade”.

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“Como assim?”

“Tenho visto muita coisa bizarra por aí, acima da média. Daqui a pouco ninguém mais se impressiona com o sobrenatural”.

“Bom, o jeito é torcer pra Era de Aquário virar logo esse jogo. De bizarrices, cuidamos nós, né?”

“Lógico. O que seria dos botequins sem as nossas jogadas?”

“Melhor você se poupar para a reta final de Brasileiro”.

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“Não agoura, Almeida…”

O papo imaginário, singela deferência a Nelson Rodrigues, inspira-se em aforismos e num par de personagens folclóricos do cronista. Representam a mão invisível dos deuses da bola, a caligrafia apaixonante do inesperado contra as estatísticas infalíveis. Neste confronto, a dramaturgia nunca conheceu derrota.

Debruçado sobre ritos, mitos, paixões da galeria futebolística, Nelson criou o Sobrenatural de Almeida para justificar infortúnios inconcebíveis que alvejassem o Fluminense do coração. Já as vitórias épicas ou insólitas – outra face da mesma moeda narrativa – tinham a assinatura de Gravatinha. Essas forças cósmicas tingiam crônicas dedicadas ao Tricolor das Laranjeiras. Mais que isso, expressavam o indefectível pacto do futebol com o imponderável.

Nelson partiu há 40 anos, em dezembro de 1980. Faz uma falta tremenda. Não só pela consagrada originalidade que ajudou a modernizar o teatro brasileiro e legou peças como “Vestido de noiva” (1943), “Álbum de família” (1946), “O beijo no asfalto” (1960) e “Toda nudez será castigada”. Faz falta não só pelo tino provocador, vanguardista, estendido da dramaturgia à literatura. Nelson também faz falta por depurar a alma do futebol e dele extrair as melhores histórias, acima da linearidade, do óbvio, da mesmice, da temporalidade hegemônica. Uma antítese do VAR.

Abstraídos os contextos históricos, culturais e midiáticos, nenhum outro capturou com tamanha maestria as feições míticas e as dicções operísticas contidas no universo simbólico e social do futebol. Não raramente o aproximava de uma tragédia grega, para a qual confluíam ditames morais, existenciais, estéticos, psicológicos. Seus banquetes narrativos extrapolavam o jogo, o gol, o placar. Deles se fartam paladares literários e resenhas esportivas.

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Um desses incontáveis banquetes remonta à entrada decisiva de Zizinho no Brasil x Paraguai disputado em novembro de 1955. Para o dramaturgo, a atuação magistral, consumada antes mesmo de o jogador juntar-se aos colegas, mostrava-se um premonitório antídoto à “esterilidade bonitinha” do primeiro tempo:

“Eis a verdade: – a partir do momento em que se anunciou Zizinho, a partida estava automática e fatalmente ganha. (…) Ele ganhou a partida antes de aparecer, antes de molhar a camisa, pelo auto-falante, no intervalo. Em último caso, poderá jogar, de casa, pelo telefone”. (Trecho da crônica Craque sem idade, uma das selecionadas por Ruy Castro na coletânea À sombra das chuteiras imortais.)

A peleja terminaria 3 a 0 para os brasileiros. Ou melhor, para Zizinho. Num “show pessoal e intransferível”, o craque fez dois gols e deu o passe para Escurinho marcar.

Alguns diriam que o estilo literário, algo fantasioso, de Nelson não resistiria ao Big Brother atual das partidas, dissecadas num show de imagens e números. Improvável. Seria como decretar que os monstros da seleção de 70, por exemplo, brilhariam menos no jogo mais corrido e espremido, consequência do avanço atlético.

O brilho de Nelson e desses bambas é imortal não só porque eles habitam a memória afetiva e contemplam o apetite pelo transcendente. Mas porque se banham numa dimensão poética. Irradiam componentes imperecíveis, e invisíveis à primeira vista. Por isso estão sempre dois ou três lances à frente.

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O cronista perfurou a superfície das proposições técnicas e táticas. Atribuiu o fracasso contra os uruguaios em 50, por exemplo, a um despreparo psicológico. Uma espécie de doença autoimune. Éramos pernas-de-pau emocionais. A Copa teria escorrido por um complexo de inferioridade, não por obra do Sobrenatural.

Àquela altura embarcávamos na construção cultural do “país do futebol”. Faltava curar a ansiedade e o déficit de autoestima. Enquanto o primeiro título mundial, em 1958, não veio legitimar o slogan identitário, o complexo de vira-lata cunhado por Nelson popularizava-se sob a batuta da imprensa. Frequentou vários textos do escritor, como neste pedaço da crônica publicada na revista Manchete Esportiva em 7 de abril de 1956:

“No jogo Brasil x Uruguai entendo que um Freud seria muito mais eficaz na boca do túnel do que um Flávio Costa, um Zezé Moreira, um Martim Francisco. (…) Pois bem: — teríamos sido campeões do mundo, naquele momento, se o escrete houvesse freqüentado, previamente, por uns cinco anos, o seu psicanalista”.

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Estilo literário nas crônicas esportivas (Redação Veja rio/Divulgação)

Dois anos depois, Nelson tornava a escalar o divã numa profética coroação de Pelé. O cronista não deixaria escapar a majestade insinuada na vitória do Santos sobre o América (5 a 3), pelo torneio Rio-São Paulo, em fevereiro de 1958. O Maracanã curvava-se aos quatro gols e outras maravilhas do garoto de 17 anos prestes a fazer história nos gramados suecos. Assim avalizou Nelson em A realeza de Pelé (Manchete esportiva, 8/3/1958):

“O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento”.

A arquibancada também era um “estado de alma” aclamado pelo escritor. Uma matriz de devoções e delírios em busca do êxtase. Uma incandescente miscigenação: “Se duvidarem, encontraremos um mandarim, ou um esquimó, entre os que sonham com as nossas vitórias”, divagou Nelson, num dos textos reunidos em O profeta tricolor: cem anos do Fluminense: crônicas.

A pluralidade dionisíaca das torcidas – seus rituais, seus excessos, seus dramas, suas glórias – aglutina-se indiferente às composturas e ao ridículo. Reforça o laço vital entre os fiéis e o time cultuado, que se renova a cada “berro da torcida”.

Faminto de interação, Caetano Veloso imaginou calor semelhante ao conclamar os espectadores em casa a entoar o refrão de A luz de Tieta no show do sábado passado. A beleza das músicas e algumas doces lembranças aliviavam o palco solitário. Órfão circunstancial da plateia, ele acalentava um milagre de Natal: “Já pensou? O pessoal dentro de casa, na sala, aí canta da janela. Estou só imaginando isso. Já pensou que bacana se acontece? Muito bom. Aí [o pessoal] puxa A luz de Tieta no prédio, no bairro, na rua, pela janela. Tomara, né?”.

As palavras de Caetano perseguiam a dádiva de todo artista, inclusive dos homeros da bola rodrigueanos: fundir-se à galera, e viver os pequenos carnavais filiados à graça do estar-junto. Reencontrá-los é um sonho ardente. Um sonho de todos nós.

Quando o pesadelo se for, e 2020 cicatrizar por completo, as arquibancadas expurgarão o berro artificial dos DJs. Inundarão o berro autêntico da mistura, dos abraços, das liturgias catárticas feitas de som e de silêncio. Liturgias transbordadas de vida, sorridentes às forças dramáticas e sobrenaturais.

Oportunamente relembrada por Caetano na apresentação natalina (YouTube), a linda Noite de cristal ilumina a esperança de dias mais leves, harmônicos, calorosos. Dias de outras cores, como pedem os versos da canção reproduzidos abaixo:

Noite prisma

Momento total

O mundo cisma

Mas eu miro o teu cristal

 

E vejo e peço

Dias de outras cores

Alegrias para mim

Pra o meu amor

E meus amores

 

Como torceu Caetano, tomara!

___________________

Alexandre Carauta é jornalista, professor, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, especialista (MBA) em Administração Esportiva, também formado em Educação Física.

 

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