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Por Alexandre Carauta, jornalista e professor da PUC-Rio
Pelos caminhos entre esporte, bem-estar e cidadania
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As casquinhas cariocas e a inspiração do rei Pelé

Em meio às resenhas e lembranças despertadas com os 80 anos do craque, vale refletir sobre o papel do futebol na construção de valores sociais

Por Alexandre_Carauta Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
28 out 2020, 14h21

O carioca não tem do que se queixar. Viu florescer Romário, Zico, Gerson. Viu Mané. Já tinha visto Zizinho, Heleno, Leônidas. Seria justo os deuses plantarem Pelé no quintal do vizinho. Veio acompanhado de bambas reunidos num time quase imbatível, talvez o melhor de todos. Ainda assim, os clubes do Rio tiraram casquinhas memoráveis do rei.

Pelé foi saudado por aproximadamente 140 mil torcedores, ao marcar um dos cinco gols rubro-negros no amistoso contra o Atlético-MG, em 1979. Poderia ter feito mais um, não tivesse deixado para Zico a cobrança do pênalti. A gentileza avalizava o ascendente soberano da Gávea. Rei é rei.

Um ano antes, já aposentado, vestira o uniforme do Fluminense noutro amistoso, contra o Racca Rovers, da Nigéria. A notícia de que participaria da partida atraiu mais de 60 mil espectadores ao estádio. Pelé sempre foi, entre outras coisas, um chamado irresistível. Todos sonham encontrá-lo na esquina do futebol com a perfeição.

O Vasco foi um caso à parte. Ganhou, por tabela, o coração do garoto cujo pai, Dondinho, jogava no homônimo mineiro de São Lourenço. Seria improvável deixar de transferir a simpatia para o famoso xará da capital fluminense.

O carinho da infância virou decolagem em 1957. Aos 16 anos, destacou-se no combinado entre Santos e Vasco que participava de um torneio internacional no Morumbi e no Maracanã. Com a camisa vascaína, usada nas partidas disputadas no Rio, Pelé amadureceu o reconhecimento de prodígio à altura da seleção. O status seria consumado, como se sabe, no título mundial de 1958.

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Quatro meses antes, em fevereiro daquele ano, o Maracanã sorria com mais um show do adolescente, na abertura do Rio-São Paulo. Pelé emplacou quatro dos cinco gols do Santos sobre o América (5 a 3). Num deles, entortou três defensores. “Quando ele apanha a bola e dribla o adversário, é como quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento”, sacramentou Nelson Rodrigues na crônica A realeza, publicada na Manchete Esportiva. Para o jornalista, Pelé era comparável a Michelangelo. Quem haverá de discordar?

O Maracanã e o Vasco o reencontrariam no milésimo gol. Mais do que garantir a virada do Santos (2 a 1), aos 34 da etapa final, o histórico pênalti imortalizava o 19 de novembro de 1969. Ao feito, impõe-se a certeira provocação de Drummond: “O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé”.

Endossa o poeta a arrancada na vitória santista por 3 a 1 sobre o Fluminense, em março 1961. O Maraca curvou-se à pintura máxima do gênio, agraciada pelo jornalista Joelmir Betting com uma placa. A homenagem inaugurava o rótulo dos gols brilhantes. Pena as imagens terem evaporado. O sumiço alimenta testemunhos romanceados de cronistas, jogadores, espectadores. Descrito pelo próprio autor em entrevistas, o lance é revivido em games e animações computadorizadas.

Pelé não vestiu formalmente a camisa alvinegra. Nem por isso deixou de cultivar com o Botafogo uma relação marcante. Devemos a General Severiano duas das mais ricas e vitoriosas rimas do futebol. Com Garrincha, Pelé formou a dupla insuperável, consagrada já em 58. Dificilmente outra equipe hospedará um par de virtuoses assim. Incomparáveis, aos outros e entre si. Um retrato do império de talentos nos áureos Santos e Botafogo.

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Com Jairzinho, Pelé dividiu o ataque arrebatador de 70. Marcaram 11 dos 19 gols que deram no tri. A memória ilumina outras dádivas. Festeja os gols não marcados. Vicejam o pacto com o imponderável. Moradas do belo, da arte, da transcendência.

O ilusionismo aplicado no goleiro uruguaio Ladislao Mazurkiewicz reúne tudo isso. A conclusão imprecisa não subtrai a grandiosidade da obra-prima. Pelé “não faz o certo, faz o sublime”, resume Sérgio Rodrigues na largada do romance O drible (Companhia das Letras, 2013).

Descontadas as reedições da memória afetiva, a inesquecível finta conserva a estética renascentista. Compõe a capela sistina pintada pelo rei nos gramados nacionais e internacionais. Os 80 anos comemorados neste mês convidam a revisitá-la. De preferência, sem o peso da nostalgia e a armadilha das comparações.

Difícil não moldurar a data com os números proeminentes de Pelé. Eles não necessariamente exprimem o melhor do Atleta do Século, mas dizem muito. Expressam a densidade singular daquele que, como definiu Armando Nogueira, “se não fosse homem, seria bola”. Refletem a sabedoria de não deixar a gostosura do drible estragar o apetite do gol. Talvez tenha sido este o grande trunfo de Pelé, a sua maior habilidade.

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O rei marcou 1282 gols, em 1366 partidas oficiais. Dois deles pavimentaram os 5 a 1 sobre o Barcelona, nas barbas do Camp Nou, em 1959. Pelé faturou cinco títulos mundiais, três pela seleção (58/62/70), dois pelo Santos (62/63). Arrematou 11 campeonatos paulistas, nove deles consecutivos. No exterior, colecionou aproximadamente 30 conquistas.

Marcas instigam superações. Disso não fogem os recordes de Pelé. Se ultrapassados forem, a majestade seguirá eterna. Os afrescos do rei, festas aos olhos e à alma, se perpetuarão encantados e encantadores. Multiplicados nas telas contemporâneas, continuarão a deslumbrar gerações.

PELE (Copyright IFC Films/Divulgação)

O legado acima das marcas não é um precedente às tentativas de revestir os números eloquentes de um valor relativo. Pelo contrário. Essas pedaladas anacrônicas beiram a desinformação, fantasma dos nossos dias. Mal prestam às esgrimas retóricas em torno da supremacia de Pelé, das quais fazem parte as perenes comparações com Di Stéfano, Mané, Maradona, Messi. Comparações tão incabíveis quanto indispensáveis ao mundo da bola.

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Sem essas resenhas, o futebol não seria o que é. Algumas delas evocaram, ao longo da Copa da Rússia, uma representação menos comum de Pelé. À medida que o Brasil sobrevivia no torneio, Neymar virava um campeão de memes. Carregadas de deboche, as mensagens nas mídias sociais reforçavam o estigma de cai-cai construído com a narrativa de que o atacante capitula facilmente às faltas e marcações ríspidas. É sistematicamente acusado de encená-las ou exagerá-las.

As quedas na Rússia pareciam afrontar menos um rendimento esportivo desejado do que o modelo de masculinidade hegemônico na sociedade moderna. Modelo que o universo futebolístico ajudou e ajuda a naturalizar. Ao comportamento desviante de Neymar, contrapôs-se uma emblemática referência a Pelé.

Pouco depois de o herdeiro da camisa 10 sofrer um pisão do mexicano Miguel Layún, no duelo das oitavas de final, disseminou-se pela internet o vídeo de um caso semelhante vivido por Pelé na semifinal da Copa de 70. Ele também levou um pisão, do uruguaio Dagoberto Fontes, no início do jogo. Em vez de se contorcer de dor, como Neymar, o rei deu o troco no segundo tempo. Acertou uma cotovelada em Fontes, supostamente despercebida pelo árbitro José Ortiz Mentizabal. O juiz ainda marcou falta a favor do Brasil.

Comentaristas e parte da imprensa até hoje enaltecem o revide, como mais uma façanha da genialidade. Nada indica que esse significado, embora exale naftalina, esteja menos pulsante nas artérias sociais. Nele se sustenta o resgate da cotovelada em 2018. A imagem da agressão cumpriu uma função moralizadora. Repisou como um verdadeiro jogador – um verdadeiro homem – devia se portar: viril, avesso à vitimização, o oposto do estigma de Neymar.

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Ainda mais pedagógico revelou-se o treinador mexicano Juan Carlos Osório. Na coletiva posterior à derrota para o Brasil (2 a 0), o renomado técnico foi categórico: “[Neymar] é um péssimo exemplo para o mundo do futebol e para todas as crianças que estão acompanhando. Futebol é um esporte forte, esporte de homens”. Faltou completar: homem não chora, não denota fragilidade, traços culturalmente atribuídos às mulheres pelo machismo estrutural impregnado no Brasil e noutros tantos países.

O episódio evidencia a força do futebol na criação e naturalização do self masculino dominante, permeável a preconceitos, discriminações, sexismo. Manifestam-se, por exemplo, na violência simbólica e material contra as mulheres. A maioria dos casos fica à sombra ou é silenciada, sob o respaldo de códigos e padrões de masculinidade convertidos em mecanismos de poder.

Corrigir esses padrões, essas cartografias morais, é tão urgente quanto rever o papel do universo futebolístico na formação de princípios, identidades e funções sociais. Afinal de contas, observa o antropólogo Arlei Damo, os meninos jogam peladas para, antes de tudo, se fazerem meninos. “Pois o futebol no Brasil é marcado como um espaço privilegiado da homossocialibilade masculina; de certo modelo de masculinidade” (trecho do artigo A dinâmica de gênero nos jogos de futebol a partir de uma etnografia, publicado em 2007).

Entre uma e outra resenha, entre uma e outra pintura do rei revisitada nas telas, convém aproveitar a efeméride para refletirmos sobre os entrelaces entre a mitologia do futebol e a construção ou reconstrução de valores. Convém debatermos como o futebol pode contribuir para uma sociedade mais justa, igualitária, inclusiva. A mudança exige bem mais do que a pressão de patrocinadores zelosos em não associar imagens corporativas à cultura do estupro.

Pelé nos inspira: o impossível é logo ali.

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Alexandre Carauta é jornalista, professor, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, especialista em Administração Esportiva, também formado em Educação Física.

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