Meio século de humor: Luiz Fernando Guimarães revisita sua trajetória
Ator comemora a efeméride com o espetáculo Curto-Circuito e a leveza de quem aprendeu a rir de tudo — inclusive de si mesmo
Inventar outro monólogo a essa altura da vida? Mais de 70 anos na cara, cinquenta de carreira, dois filhos, cheio de cachorro… Fica em casa, querido! Mas não, fica por aí querendo fazer teatro, quer sentir frio na barriga”, provoca a amígdala do cérebro de Luiz Fernando Guimarães logo no início de Curto-Circuito, uma homenagem à trajetória de um dos mais importantes comediantes brasileiros, que completa cinco décadas fazendo o que sabe melhor: pôr o público para rir. A região da mente responsável por processar as emoções é interpretada pela atriz Letícia Augustin no espetáculo que estreia na próxima terça (18), no Teatro Copacabana Palace. Escrita por Gustavo Pinheiro e dirigida por Gustavo Barchilon, a peça revisita, com humor, claro, e vasta lucidez, as pequenas tragédias e situações-limite do cotidiano, mirando algo tão comum de se ver — a desistência. “Todo mundo já pensou em desistir. Não da vida em si, mas de qualquer coisa. Eu mesmo já vivi intensamente algumas situações em que só queria ir embora. Acho que a plateia vai se identificar”, aposta o artista.
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Um paciente prestes a ser trancado no tubo de ressonância magnética, um estudante que não sabe resolver as questões do Enem, um comissário de bordo em voo turbulento, uma celebridade encarapitada num carro alegórico de escola de samba — esses são os tipos encarnados por um enérgico Luiz Fernando Guimarães, que não sai do palco em nenhum momento durante a uma hora de apresentação. “Ele assistiu à peça A Tropa, com Otávio Augusto, e disse que tinha vontade de interpretar um texto meu. Prontamente, comecei a escrever”, relembra o dramaturgo Gustavo Pinheiro, que conta ter assistido pela primeira vez a uma montagem dele com apenas 8 anos. A peça era Fica Comigo Esta Noite, com Luiz ao lado de Debora Bloch. “Fiquei fascinado. Está até hoje na “Minha memória afetiva”, emociona-se. Para conferir à empreitada uma camada extra de brilho, Pinheiro convocou uma turma de elevado quilate: Debora Bloch, Fernanda Torres, Claudia Raia, Regina Casé e Patricya Travassos, amigas de longa data do homenageado, se fazem presentes em áudios ao longo da peça. “De todas as pessoas com quem contracenei, foi com ele que bati a melhor bola. Estava com saudade dessa troca”, diz Regina Casé.
Expoente do humor nacional, Luiz Fernando integrou o irreverente grupo de teatro Asdrúbal Trouxe o Trombone, que antecipou o besteirol durante os anos de chumbo da ditadura militar, influenciando gerações de artistas. Ele anda longe das novelas desde 2018, quando fez parte do elenco de O Tempo Não Para, trama global das 7. A última experiência teatral em solo carioca foi em Ponto a Ponto — 4000 Milhas, em 2022. Vivendo com o empresário do ramo hoteleiro Adriano Medeiros e os filhos adotivos Dante, 14, e Olívia, 12, entre o apartamento no Jardim Botânico e o sítio em Itaguaí, o artista tomou gosto pela rotina mais reclusa. Nascidos no Amazonas, os irmãos vieram morar com o casal na pandemia, selando o fim de uma virada que começou em 2017. Naquele ano, Luiz Fernando foi internado à força pelo marido, com a ajuda de Claudia Raia, para tratar do abuso de álcool. “Foi a fase mais difícil de todas. Ou entrava forte nessa tentativa, ou eu tomava outro rumo”, recorda Adriano. O sítio, com horta, pomar e cães para todos os lados, se tornou o cenário idílico da fase serena. “Não cogitava a paternidade, mas um dia olhei para o Adriano e falei: está faltando algo”, conta Luiz Fernando. “Ele é um amigo raro. Não julga e está sempre pronto a estender a mão. Hoje, é um pai que nos enche de orgulho”, elogia Claudia, madrinha de Olívia.
Os intensos episódios de uma vida de excessos foram escancarados em Eu Sou Uma Série de 11 Capítulos — A Autobiografia, lançada em 2022 (Ed. Globo), graças ao incentivo de Fernanda Torres, com quem ele marcou a história dos sitcoms brasileiros em Os Normais, de Alexandre Machado e Fernanda Young (1970-2019). Sem fazer drama, o ator relembra com franqueza como se lançou ao fundo do poço, com direito à perda total de dois carros, e da relevância da terapia para reconhecer o vício. Aventuras lisérgicas com o amigo Ney Matogrosso Também são citadas no livro, assim como memórias da época em que só conseguia trabalhar à base de ansiolíticos, além de tristes partidas de amigos que tiveram a vida abreviada pela aids nos anos 1980. Nas páginas, ele deixa clara a lupa pela qual enxerga o mundo: sem militância e sem bandeiras agitadas. “Repasso aos meus filhos um conselho que sempre dei a meus amigos: vai no impulso”, diz Luiz Fernando, que se vê reconectado com seu “eu mais alegre” desde a chegada das crianças. “Somos uma família como outra qualquer. Queremos inspirar as pessoas a viver de forma natural”, fala o marido.
Nascido em 1949 em uma família de classe média carioca de Laranjeiras, o humorista de verve afiada foi um jovem engraçado, porém introspectivo. “Eu era o cara das boas tiradas, mas muito tímido. Achava que todo mundo ria de mim, não do que eu dizia, e isso me incomodava”, lembra. A intuição e a sinceridade, marcas inconfundíveis, segundo ele o guiaram por uma carreira feita de escolhas autênticas e firmes recusas, a exemplo de papéis que preferiu não fazer. Também nunca teve contrato longo com a TV Globo, “em nome da liberdade criativa”. No teatro, entendeu que o humor jamais poderia ser um escudo. “Nos tempos do Asdrúbal, aprendi a não temer imprevistos”, afirma o ator, que prefere ser chamado de comediante a humorista e não se desvia de uma polêmica não raro evitada por profissionais do riso. “Acredito que o limite está no constrangimento. O importante é respeitar. Se a piada for constrangedora, não é engraçada”, reflete. Para o pesquisador Mauro Alencar, ele ajudou a redefinir no país a própria ideia do que é engraçado. “Com a TV Pirata e Os Normais Luiz Fernando agregou teatralidade à TV, unindo o drama cotidiano ao deboche”, avalia o autor de A Hollywood Brasileira — Panorama da Telenovela no Brasil.
Entre 2020 e 2024, o núcleo de humor da Globo ficou esvaziado e uma das grandes apostas deste ano foi a série Pablo & Luisão, criada por Paulo Vieira, que resgata o conceito de “humorístico para a família toda”. “As novas gerações estão fragmentadas e não assistem tanto à TV aberta. O riso continua sendo um dos estímulos mais nobres das artes”, analisa o historiador e pesquisador teatral Daniel Marano. “O estilo contido e observador de Luiz Fernando Guimarães faz com que ele seja uma espécie de Bill Murray brasileiro, que, mesmo sério, faz a audiência rir”, ressalta. Já o diretor Gustavo Barchilon, que também o conduziu em Ponto a Ponto, assim o qualifica: “Ele é um capítulo vivo da história da comédia, misturando ironia, poesia e crítica social”. Aos 75 anos, o ator continua se reinventando, ávido por sentir mais uma vez aquela comichão que acompanha o nascedouro de um trabalho ó e deixa a amígdala a toda. “No início, dá ansiedade, mas sempre saio de cena com a alma lavada”, diz. Para o futuro próximo, uma viagem com paradas na Croácia e no Japão com a família já está nos planos. A ideia é tirar proveito dos mais belos cenários ó dentro e fora de cena.
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Diga-me com quem andas
Amigos chegados lançam um novo olhar sobre o ator
“Ele é meu irmão, meu amigo há muitos anos. Foi uma referência enorme para mim na comédia. O tempo dele, o raciocínio, a leveza… Tudo é único. Ele trabalha com tanta alegria que é um prazer vê-lo. No teatro, então, Luiz Fernando é impagável.” Claudia Raia
“Estávamos prestes a estrear O Inspetor Geral, primeira peça do Asdrúbal, quando um dos atores precisou ser substituído às pressas. Várias pessoas foram testadas, até que o Luiz Fernando chegou. O Hamilton Vaz Pereira pediu para ele improvisar, e ele começou a imitar animais sem dizer uma palavra. Naquele momento entendi que ele seria meu parceiro.” Regina Casé
“No Asdrúbal todos tínhamos um humor natural, sem rótulos, e a personalidade de cada um aparecia de um jeito peculiar. Um influenciava o outro, sempre respeitando as particularidades. Nesse contexto, ele era o debochado, o sonso que finge não saber que é engraçado. Isso é muito bom.” Patricya Travassos
“Um dos parceiros mais generosos, em cena e fora dela, que tive o privilégio de conhecer. Durante os três anos da série Os Normais e, depois, nos dois filmes que fizemos como Rui e Vani, apenas uma preocupação me norteava: não decepcioná-lo ou atrapalhá-lo.” Fernanda Torres
“O Luiz sempre propõe o novo com sua crítica inteligente sobre tudo que poderia ser maçante. Estar ao lado dele é ficar longe do tédio.” Diogo Vilela
Tiradas geniais
Dramaturgo do momento, Gustavo Pinheiro já tem quatro novos textos para 2026
Jornalista, escritor, tradutor e roteirista, Gustavo Pinheiro teve seu primeiro texto, A Tropa, encenado em 2016, quando venceu, aos 36 anos, a sétima edição do Seleção Brasil em Cena, concurso de novos autores do Centro Cultural Banco do Brasil. Desde então, o carioca se tornou um dos autores mais requisitados do país, atingindo a marca de 1 milhão de espectadores em peças encenadas por nomes como Antonio Fagundes, Christiane Torloni, Ana Beatriz Nogueira, Thiago Fragoso, Alinne Moraes, Deborah Evelyn, Nathalia Dill, Suely Franco e Mariana Xavier — um rol estelar que não acaba. “É uma honra que as pessoas se emocionem e se divirtam com as histórias que eu conto. Trabalho pensando na reação da plateia”, diz.
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A Lista, seu oitavo texto para teatro, escrito na pandemia para Lilia Cabral e a filha dela, Giulia Bertolli, recebeu três indicações ao Prêmio Bibi Ferreira, em 2022, incluindo a de melhor texto. Pinheiro foi ainda criador e roteirista da adaptação da história para um filme de TV, com a veterana ao lado de Tony Ramos, visto por mais de 15 milhões de pessoas na TV Globo. É ele também o tradutor da montagem da peça Três Mulheres Altas, de Edward Albee, no mesmo 2022. Dois de Nós, sucesso protagonizado por Fagundes e Torloni, atualmente em turnê por Portugal, já foi vista por mais de 150 000 espectadores e chegará ao Rio em julho de 2026, ano em que estão previstos quatro novos textos seus nos palcos. “O bonito nessa caminhada é que os atores assistem às minhas peças e me convidam para novos projetos. É o trabalho que me leva a novos trabalhos”, celebra o autor, voltado agora para dois projetos encomendados por produtores de cinema.
Mudança de humor
Como o gênero foi se moldando aos novos tempos da TV brasileira
1950-1960. Os primeiros passos foram dados em Rancho Alegre, estrelado por Mazzaropi na TV Tupi, e Praça da Alegria, exibida inicialmente pela TV Paulista. A criação de Manoel de Nóbrega consagrou o formato de esquetes. Na década seguinte, o gênero se consolidou com Chico Anysio Show, marco da multiplicidade de personagens e da sátira social.
1970-1980. Novos estilos, mais críticos e sofisticados, foram experimentados em produções como Faça Humor, Não Faça Guerra e Satiricom.
O fenômeno Os Trapalhões dominou o país com apelo familiar, enquanto Planeta dos Homens e Viva o Gordo trouxeram uma visão política. Já a TV Pirata inovou com linguagem moderna e crítica à própria televisão.
1990-2000. A Escolinha do Professor Raimundo consolidou Chico Anysio como mestre da comédia. Casseta & Planeta, Urgente! marcou época com refinadas paródias, enquanto Sai de Baixo trouxe o improviso teatral para a TV. No final da década teve Vida ao Vivo Show e Piores Clipes do Mundo, seguidos por Zorra Total.
2000-2010. Nos anos 2000, a MTV ousou e conquistou os jovens com Hermes e Renato e Rockgol. Também foi nessa época que o Pânico na TV chocava pela falta de noção. Na Globo, sitcoms como Os Normais, A Diarista, Sob Nova Direção e Toma Lá, Dá Cá dominavam a grade.
2010-2020. O telejornal satírico CQC — Custe o Que Custar deu o tom da transição para a era digital na virada da década. A nova geração de humoristas levou o gênero para múltiplas plataformas. Tapas & Beijos e Vai que Cola mantiveram o formato de sitcom em alta, enquanto Greg News consolidou o humor político e cultural contemporâneo.
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