Maria Ribeiro: ‘há datas que, por mais que corramos, não saem do presente’
Após morte de Milan Kundera, colunista e atriz faz uma ode ao casamento infalível: 'um livro, um leitor e tudo de imenso que vem a partir disso'
Acordo com a notícia do Kundera. “Morre o escritor Milan Kundera.” Me emociono, o que não quer dizer muito. Virei essa pessoa. O.k., li A Insustentável Leveza do Ser, e, sim, foi um livro marcante e que segue na primeira divisão dos meus HDs.
Também gosto do filme com a Juliette Binoche e com o Daniel Day-Lewis, mas nada disso justifica a comoção que me tomou de assalto, assim, do nada. Sem claquete.
Além do mais, sou contra sofrer errado. Alguém que parte aos 94 anos merece uma despedida à la Zé Celso Martinez. E não frases tristes. Uma vida longa, uma carreira bonita, uma existência com lastros, chorar por quê?
Se nem mesmo o conhecia, a não ser como fã? Se a morte aos 90 é quase tão natural quanto um parto? “Porque não há perfeição, só vida” — e é claro que a frase é do escritor.
A razão pela qual fui roubada das minhas tarefas cotidianas naquela terça-feira de julho se deu por causa de uma imagem. Junto à notícia da partida de Kundera, havia uma foto da capa de seu livro mais famoso, o mesmo que deu origem ao drama cinematográfico (que, a propósito, ficou mais de um ano em cartaz no Brasil…).
E a questão é que a foto, pra mim, não era uma foto. A foto sequer era a história, que só fui ler dois anos atrás (em edição de bolso, da Companhia das Letras). A foto era uma separação.
“Assim como A Insustentável Leveza do Ser fala de escolhas, do acaso e do peso nosso de cada dia, a lembrança da cena da minha genitora com esse livro me trouxe todas as vidas que ela e eu não tivemos a partir dali”
Uma obra como A Insustentável Leveza do Ser, que vendeu milhares de exemplares, obviamente possui mais de uma capa e já foi abrigada por algumas editoras, mas, pra mim, só uma imagem seria capaz de viagem tão longa e imediata ao mesmo tempo. A da Nova Fronteira. Com a cidade de Praga logo acima do título. Aquelas letras amarelas me fazendo chorar e ser de novo uma garota com medo de tudo.
Mil novecentos e oitenta e quatro. É curioso realizar o fato, contra o qual nada podemos fazer, de que existem datas que, por mais que a gente corra, não saem do presente.
Mil novecentos e oitenta e quatro — ano da publicação do clássico checo — é o primeiro da minha lista de calendários rebeldes. Independentes. De mim, da cronologia gregoriana, dos anos de psicanálise, das centenas de curativos que já colei sobre eles.
Porque esse foi o ano em que meus pais se separaram. Porque a partir desse fato minha mãe passou a ficar muito tempo na cama. E porque esse foi o livro que, exatamente naquele momento, passou a morar em sua cabeceira. Como um marido bom. Ou uma imagem de Nossa Senhora.
Tudo isso faz muito tempo. E tem pouco a ver com o falecimento do escritor. Mas, assim como A Insustentável Leveza do Ser fala de escolhas, do acaso e do peso nosso de cada dia — inclusive quando não o sentimos —, a lembrança da cena da minha genitora com esse livro me trouxe todas as vidas que ela e eu não tivemos a partir dali.
E se ela não tivesse emagrecido tanto? E se eu não tivesse me sentido tão abandonada? E se pudesse vê-la como a vejo agora? E mais: e se meu pai tivesse ficado? Se fosse ele o leitor? Se fosse dela a leveza de que fala o Kundera? Se fosse dos dois?
Nunca saberemos. Nem ela, nem eu. Mas como minha mãe está bem viva e sua cabeceira segue sendo um misto de altar com amor verdadeiro, faço aqui uma ode a esse casamento infalível. Um livro, um leitor, e tudo de imenso que vem a partir disso.