Maria Ribeiro: “Desejo um 2023 de reconstrução. Não, de construção”
Atriz e colunista fala sobre quando experimentou o "mundo ideal" ao ver um filme de Clarice Lispector no cinema, durante um difícil 8 de janeiro
Eu estava no cinema, vendo o filme da Clarice Lispector. Quer dizer, não, “da” Clarice Lispector, mas sobre a Clarice Lispector. De modo que posso afirmar, sem medo de ser feliz (sim, isso é uma referência), que vivia instantes do que se pode chamar de mundo ideal. Mundo ideal, assim, sem aspas mesmo. Sem aspas, sem medo, sem dor.
Afinal, uma sala escura, em uma rua de Botafogo, lotada de seres humanos que, diante de todos os programas do mundo, decidem ouvir literatura em uma tarde de domingo, vocês me desculpem, mas isso não tem como não ser Deus. E, se não for o próprio, o “lá de cima” em pessoa, só pode ser alguma coisa muito alinhada com ele, algo como, sei lá, a sede oficial do departamento de propaganda do Homo sapiens. Vejam como deu certo!
Então. Dizem as más línguas (já que estamos todos traumatizados por “gente de bem”) que, às vezes, Ele está de fato entre nós. E que costuma frequentar cineclubes, livrarias, escolas e sorveterias. Não preciso nem explicar que, naturalmente, não existe rezar pra alguém que não goste de sorvete (à base de leite, vale lembrar — fruta não vale).
Na verdade, o criador já vinha dando sinais de estar um pouco mais atento a essa fatia geográfica da sua, digamos, “obra-prima com questões”, desde o fim do ano passado. Lula foi eleito, White Lotus manteve a atriz que faz a Tanya, Celeste e Gaspar nasceram, descobri um sub Deditos que me proporciona quase a metade do prazer do original — o que põe fim a uma busca de quase duas décadas —, e até a Maria Bruaca conseguiu largar o marido no Pantanal e posar pra Vogue. Ou seja, 2022 teve lá o seu valor. E o maior deles foi anteceder 2023.
O que me faz voltar à Clarice. Ou ao filme da Clarice. Ou ao dia em que eu via, ou vi, já não sei mais qual tempo verbal usar, um documentário sobre uma das maiores brasileiras de todos os tempos enquanto a capital do meu país — que também é seu e era dela — era invadida por criminosos sem nenhum estilo, patriotismo ou fé.
“Uma obra de arte é um negócio sério. Se tudo der certo, ela te invade o peito, e você sai do filme (ou da peça, ou da exposição, ou do show) como se tivesse ganhado filtros novos”
Uma obra de arte é um negócio sério. Se tudo der certo, ela te invade o peito, e você sai do filme (ou da peça, ou da exposição, ou do show) como se tivesse ganhado filtros novos. Com eles, reposiciona a sua história a partir das flechas que recebeu do artista, e daí pro futebol bonito é questão de coragem, criatividade e um pouco de Freud.
Eu não vivo sem isso. E não é porque sou atriz, mas porque preciso, pra acordar e dar conta da vida (e também das angústias, da morte, e do desamor), da beleza e da transcendência, que recebo, por exemplo, de textos e de existências como as de Clarice Lispector. A vida da escritora ucraniana, sob o recorte de Teresa Montero, diretora do documentário — que segue nos cinemas —, me permitiu sobreviver ao 8 de janeiro de um jeito que não seria possível sem o Leme e o Recife.
Eu sou louca por Brasília. Ao contrário de muitos amigos, acho a cidade de uma dureza belíssima. Ver Lúcio Costa e Oscar Niemeyer serem agredidos de forma tão bárbara e inconsistente por conterrâneos que provavelmente desconhecem suas biografias me dá vontade de nunca ter saído daquele cinema em Botafogo. De nunca ter deixado o mundo ideal.
Isso sem falar na democracia. Ou no Di Cavalcanti. Ou no Krajcberg. Mas, olha, sempre haverá o discurso do Silvio Almeida. A subida da rampa no dia 1º. Os livros da Clarice. As pessoas dos cinemas, as revistas impressas, os restauradores de telas. A eles, e a todos os brasileiros que ainda não se renderam à nossa terra (e também ao nosso concreto), eu desejo um 2023 de reconstrução. Não, de reconstrução, não. De construção. Vamos lá. Limpar, varrer, arrumar, refazer.
Que faxina também é arte. E tem PEC pra quem vive disso.