A magia dos cogumelos: recreação e terapia podem andar juntas?
Encontrada em 116 fungos e alvo de pesquisas, a psilocibina vem sendo usada em tratamentos psiquiátricos e para fins recreativos na noite carioca
Lançada em julho deste ano pela Netflix, a série Como Mudar Sua Mente, inspirada no best-seller do jornalista americano Michael Pollan, conta em quatro episódios a história do renascimento das pesquisas sobre o uso medicinal de psicodélicos como o LSD e o MDMA, depois de anos no limbo da ciência. Outra droga em destaque trazida à cena é a menos conhecida (ao menos por esse nome) psilocibina: encontrada em 116 espécies de cogumelo, ela já teve seus dias de glória na década paz-e-amor de 60, quando era vastamente consumida na forma de chá nas comunidades hippies. Pois os fungos que carregam a substância, chamados hoje de cogumelos mágicos, voltaram a ganhar popularidade. Vendidos em cápsulas ou desidratados, com fácil acesso (apesar das restrições impostas pela Anvisa) em sites de vendas, eles passaram a ser procurados por cariocas que buscam amenizar sintomas de doenças psiquiátricas e/ou usufruir seus efeitos psicodélicos. “Com essa droga, recreação e terapia podem andar juntas”, diz a neurocientista Luiza Mugnol-Ugarte.
+ Vizinhos de peso disputam a chance de dar protagonismo ao Jardim de Alah
Durante um período difícil de sua vida, em 2015, a neurocientista vislumbrou, após a leitura de artigos acadêmicos, a possibilidade de tratar um quadro depressivo com a ajuda de psicodélicos. “Os impactos foram muito positivos”, conta. No caso da psilocibina, são diversos os estudos sérios que demonstram sua eficácia para males como distúrbios alimentares, pós-traumáticos, ansiedade, transtorno obsessivo-compulsivo e até mesmo dependência química. No fim de agosto, cientistas da Universidade de Nova York comprovaram que apenas duas doses da substância — combinadas com psicoterapia — levaram à redução de 83% na ingestão excessiva de álcool entre os participantes. “O tema ainda é tabu no país, que costuma frear o curso de pautas consideradas progressistas, mesmo diante de conjuntos robustos de evidências”, afirma o pesquisador Stevens Rehen, autoridade nos estudos sobre os efeitos de psicodélicos e canabinoides (compostos extraídos da planta da maconha) no cérebro humano.
Dentro dos laboratórios do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino, em Botafogo, e na Universidade Federal do Rio de Janeiro, as descobertas de Rehen ajudam a ir desmistificando tais substâncias à luz da ciência. Atualmente, ele conduz uma investigação com o objetivo de identificar os genes e proteínas alterados não só pela psilocibina, mas também pelo DMT (ingrediente do chá psicoativo ayahuasca) e pelo LSD (droga sintética criada em laboratório) — e suas reações no corpo humano. “Os psicodélicos são uma classe de moléculas parecidas com a serotonina, ativando os mesmos receptores e desencadeando estados alterados de consciência”, explica. O tema é recebido com reserva nos meios médicos, uma vez que a prescrição é proibida no Brasil. Alguns psiquiatras do Rio, porém, já acompanham pacientes (e isso é permitido) que optaram pela microdosagem — o consumo de quantidades bem baixas que não causam efeito alucinógeno, como fez o produtor cultural Maurício Spinelli, 45 anos. “Melhorou meu sono, minha disposição e meu humor”, diz ele, que, depois da pandemia, optou por novos caminhos para tratar um antigo quadro de depressão e associou os cogumelos ao canabidiol.
+ Maquinas do tempo, câmeras antigas dão ângulo retrô ao presente do carioca
Em meio a startups e empresas globais de tecnologia do Vale do Silício, o efervescente naco da Califórnia onde a venda e o consumo dos psicodélicos são liberados, eles atraem por seu potencial de fazer aumentar a criatividade e a produtividade, de acordo com recentes pesquisas. Seu uso, no entanto, pode acabar representando certos perigos. “Existem riscos graves na interação dessas drogas com outras substâncias, como os remédios tarja preta, por exemplo, e também para quem possui algum problema cardíaco, hepático ou tenha histórico pessoal ou familiar de psicose”, alerta a psiquiatra carioca Debora Tavares. Pelas mesmas razões, também inspira cautela seu uso recreativo, hoje em expansão. “Gosto de tomar em ocasiões especiais, que estimulem o desenvolvimento dos meus sentidos. Dá uma sensação de bem-estar e liberdade, sem a rebordosa de outros entorpecentes”, relata um advogado de 44 anos.
Na década de 70, a cruzada contra as drogas encabeçada pelo então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, desacelerou as pesquisas científicas sobre seus potenciais benefícios à saúde. “A consequência foi um atraso estimado em meio século nos estudos”, estima Stevens Rehen. Mas a roda girou, e os especialistas voltaram a se debruçar sobre o tema. No Brasil, ainda é proibido produzir, distribuir e comercializar substâncias desse tipo, embora as plantas e os fungos alucinógenos vendidos on-line se encontrem em uma situação curiosa: não constam na lista de proibições da Anvisa, mas a psilocibina contida nelas sim, é vetada. A exceção à regra, segundo a agência reguladora, é o uso para fins “etnobotânicos” (para estudo) ou religiosos (como é tradição desde os tempos dos incas) — algo que os sites advertem, sem, porém, deixar de vender qualquer que seja a situação.
+ Para receber VEJA RIO em casa, clique aqui
Nos últimos tempos, o clamor de uma ala de cientistas parece estar conduzindo a discussão a outro patamar. “Estamos cada vez mais próximos de uma regulamentação, e o nosso argumento é que trabalhamos em prol da saúde pública”, diz Emílio Figueiredo, fundador da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas (que também se mexeu a favor da legalização do canabidiol) e advogado de uma fazenda produtora dos cogumelos psicoativos no interior do Rio. Em maio, a Anvisa deu autorização para o teste dos “cogumelos mágicos” no desenvolvimento do primeiro medicamento brasileiro à base de psilocibina. E assim, com todos os cuidados que a discussão requer, ela vai deixando o rol dos assuntos impronunciáveis.