Eduardo Sued, aos 100 anos: “Quantos animais vivem um século?”
O principal colorista brasileiro e grande nome da abstração geométrica acaba de inaugurar uma exposição na cidade

“Acordei no dia seguinte ao meu aniversário e vi a sala do apartamento ainda decorada com balões dourados. Parei para refletir: tenho 100 anos. Fico admirado, porque é coisa para caramba. Quantos animais vivem um século? Poucos. Meu corpo sabe o que é ter dez décadas. Uso cadeira de rodas, tenho dificuldade para escutar e conto com o auxílio de uma cuidadora para beber água, por exemplo. Mas a minha cabeça não para nunca e me diz justamente o contrário: eu sou jovem.
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Minha lembrança mais pujante da infância é a impressionante sensação de conhecer as cores. Eu gostava de separar diferentes papéis tingidos em envelopes. Sou apaixonado pelo vermelho até hoje, gosto de vestir camisetas rubras. Todos os tons, especialmente os primários, me acompanham o tempo todo, até nos sonhos. Me sinto tocado por paletas e formas, então simplesmente preciso colocá-los para fora. Sou apenas um pobre diabo em busca de registrar o belo.
As telas me desafiam a traduzir a harmonia entre diversos elementos num espaço limitado, mas tenho a impressão de que a minha obra só se completa a partir do olhar do outro, do público. Por isso gosto tanto de exposições. Já perdi a conta de quantas participei, não só no Rio mas em diversas cidades. Para celebrar meu centenário, Maneco Müller e a esposa, Stella Ramos, escolheram dezesseis pinturas recentes. Faço questão de ir até o ateliê três vezes por semana. O problema de ter a minha idade é que preciso ir ao médico com certa regularidade, o que considero uma chatice. Eles mesmos marcam o horário da consulta e se atrasam, então, se fico à disposição dos doutores, não consigo pintar.
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Nos dias em que não consigo abrir um diálogo comigo e com toda a arte que há dentro de mim, me sinto um nada. Eu realmente não poderia ter escolhido outra profissão, não viveria de outra forma. Meus pais, imigrantes sírios, exigiram que os seis filhos fizessem faculdade. Cheguei a cursar engenharia, mas desisti no terceiro ano. Passei uma temporada em Paris no início da década de 1950 e não teve jeito, os ares franceses me fizeram artista.
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Quando voltei à capital fluminense, em 1953, passei a trabalhar como assistente do Iberê Camargo. A partir daí, testemunhei diversos movimentos da arte contemporânea brasileira, mas sempre fui capturado pelas cores. Nunca quis seguir uma corrente específica. Gosto de abraçar o erro, não tenho pena de rejeitar algumas criações, porque é um sinal de que algo melhor pode surgir lá na frente. Sou apreciador do silêncio e dos compositores clássicos.
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Minha casa sempre foi sinônimo de criatividade. Um dos meus filhos gêmeos, de 65 anos, se tornou músico, inclusive. Minha companheira, a estilista Marília Valls, que morreu em 2018, era fundadora da butique Blu Blu, foi uma pessoa importante. Juntos, formávamos um casal estiloso. Sinto muita falta dela. Para tentar aplacar a saudade, gosto de olhar fotos antigas. Minha casa é coalhada de porta-retratos. Estou sempre cercado de lembranças das pessoas queridas que já se foram.
O meu único irmão vivo, o Lauro, dentista, tem 98 anos e nós fazemos questão de nos ver com frequência. Os encontros de família são sempre apinhados, mas eu confesso que fico um pouco cansado, preciso voltar para os matizes que me preenchem. Para mim, a cor é a presença de vida. E isso significa que vou seguir pintando. Parar, definitivamente, não é uma opção.”
*Em depoimento a Marcela Capobianco