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Djavan conta como a fama alterou o racismo em sua vida

"Hoje, esse preconceito se manifesta para mim de maneira diferente", diz ele, antes de seu primeiro show solo no Rock in Rio

Por Kamille Viola
Atualizado em 10 set 2022, 23h15 - Publicado em 10 set 2022, 17h44

Há 31 anos, Djavan subiu ao palco do Rock in Rio para participar da apresentação do guitarrista mexicano Santana. Neste sábado (10), ele está de volta ao festival, mas para realizar um show seu pela primeira vez. Atração que abre a programação do Palco Mundo, o cantor e compositor alagoano vai enfilteirar grandes sucessos de sua carreira, como Se, Sina, Flor de Lis e Samurai, além de algumas músicas do recém-lançado álbum D.

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Em entrevista a VEJA RIO, o artista de 73 anos, que recentemente declarou seu voto para presidente em Lula, falou sobre artistas que o ajudaram no início de sua carreira, racismo e envelhecimento em público, entre outros assuntos.

Você fez uma participação no show do Santana em 1991, mas agora é uma apresentação completa. Sei que você é admirado no mundo inteiro e tocou em muitos festivais. Mas no Rock in Rio são 100 mil pessoas por dia e no nosso país, é algo especial. Como você está se sentindo? 

Eu estou certo de que estou me encaminhando a fazer um espetáculo único, inédito na minha vida. Porque o Rock in Rio tem toques que a gente não pode comparar. Não é só o público de 100 mil pessoas, mas a abrangência. Ele leva o que está acontecendo no palco para o mundo inteiro. E, para uma pessoa que já tem uma inserção fora do Brasil bastante acentuada, é um upgrade maravilhoso, e eu estou realmente muito ansioso para fazer esse show, porque eu espero fazê-lo de modo energético, vibrante, eu espero realmente que a plateia esteja — como sempre está quando eu faço show — a favor, com expectativa positiva. E estou me preparando para que tudo isso ocorra realmente de maneira muito boa, que eu saia do palco feliz e deixe todo mundo feliz.

Seu show terá trabalhos de artistas periféricos nas projeções. E em termos musicais, qual a diferença desse show para um show seu de turnê?

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Você tem que fazer um repertório que funcione para 100 mil pessoas. Não pode ser um que deixe as pessoas meio voando. E, ao mesmo tempo, você precisa estar feliz com o que você está fazendo. É um repertório que tem que reunir músicas de sucesso, e ao mesmo tempo, músicas que você se sinta bem cantando. Busquei criar um repertório que corresponda à expectativa de todos, inclusive a minha. Embora isso não seja uma coisa fácil, porque você vai fazer um repertório que seja um tiro só, um show de uma hora. Então você tem que fazer um que envolva clássicos mesmo, não tem jeito. E eu também quero mostrar alguma coisa do disco novo. Como é que você vai fazer isso? Eu tenho tentado desde o início dos ensaios para esse show lidar com essa questão. Você tem que correr esse risco. Também não quero chegar lá e fazer o óbvio do óbvio, não vai me satisfazer. Eu consegui criar um repertório que eu acho que vai agradar a todos os lados.

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Você fez recentemente Rock The Mountain, vai fazer o Coala. Como tem sido se apresentar para um público de festival? Que é jovem, acredito que isso renove seu público…

A minha plateia é muito heterogênea em todos os níveis, isso sempre foi assim. E isso deve-se à diversidade da minha música, que traz uma diversidade também de raça, de religião, de classe social, faixa etária. Eu sempre vi nos meus shows garotos de 10, 12 anos. Já estou acostumado com essa diversidade dos meus shows. É uma coisa que me agrada profundamente, e eu conto com isso, porque isso já acontece há muitos anos.

Mas tocar em festival tem algo de diferente?

Ah, sim. Houve uma época em que eu fiz muito festival, tanto no Brasil como fora, ao redor do mundo. Depois eu parei um pouco de fazer, porque é uma logística distinta, e eu tenho uma logística própria das minhas turnês, e sofria um pouco com os festivais, porque ali é uma logística para todos os artistas que vão participar daquele dia. E isso não é uma coisa simples. Aí voltei a fazer o ano passado e gostei. Gostei de fazer o Rock The Mountain, fiz um outro também, e agora vou fazer o Rock in Rio e o Coala. O Rock in Rio não se compara muito aos outros, por causa de toda essa estrutura que ele traz, que é única no mundo. Mas fazer festival não pode se tornar um hábito, digamos assim (risos). Porque eu tenho uma turnê a cumprir a cada lançamento de disco, e as minhas turnês têm uma outra pegada, uma outra maneira e razão de ser. Mas festival e aqui e acolá é bom fazer também.

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Você é um artista que cuida da sua música em vários aspectos: produz seus álbuns, faz seus arranjos, eu já vi você dizendo que era sofrido esse processo com produtor às vezes, agora está falando sobre a logística única dos festivais… Você é um artista que gosta de participar de todas as etapas nos shows, se envolve?

Não é nem que eu goste, eu preciso me envolver em tudo. Porque eu tenho uma carreira longa, quarenta e poucos anos, e já sofri de todo tipo de coisa. Essa coisa que você pensar o seu pensamento, o seu desejo ser desenvolvido por outras pessoas nunca dá certo. Sobretudo quando você é, naturalmente, uma pessoa que pensa um pouco diferente na profissão, no fazer da sua arte. Então eu acabei abraçando todas essas funções e até hoje continuo assim. E não vou mudar, porque eu não quero ficar insatisfeito depois. É óbvio que essa maneira que eu tenho de fazer me dá trabalho triplicado com relação à maioria das pessoas. Mas eu gosto de fazer o que eu faço. E só de saber que ali eu vou garantir o meu bem-estar, isso já me desinibe de ter muito trabalho, de passar horas e horas, às vezes não dormir direito, essas coisas todas, para fazer o que eu tenho que fazer. 

Você ficou com uma fama de fazer letras complicadas de entender, que acho até injusta, porque a gente vê outros artistas que também fazem letras que não são óbvias de se compreender e a cobrança não é a mesma. Acha que algumas críticas que sofreu na carreira têm influência do racismo?

É óbvio que têm, o racismo é a razão desse tipo de problema. E é paradoxal, porque o número de sucessos que eu tenho, como é que você pode abrir a boca para dizer que a minha letra não é compreendida? E por que tantos sucessos? Porque a origem é determinante na hora da análise de um artista. Eu sou um negro, filho de uma lavadeira, do segundo estado mais pobre da federação brasileira (Alagoas), não fiz faculdade. Então nada pode garantir, para quem está acostumado a analisar os outros, que o que eu faço faça sentido se eu não tenho uma base intelectual. Isso tudo é bobagem.

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E o que importa?

Na verdade, o talento vale muito pouco. O que vale mesmo é a inteligência, é ela que comanda tudo. Se você tem inteligência para desenvolver um talento, você vai ser um grande talento no futuro. Se você não tem, você não vai. Mas eu sou uma pessoa que, quando Deus botou no mundo, ele disse: “Você vai ter problemas, porque você vai desenvolver uma música que não vai ser usual. Mas eu vou te dar força, certeza, você vai ter uma personalidade que vai ter que romper essas barreiras, porque senão você não vai conseguir.” E foi isso que aconteceu, é isso que acontece, eu tenho certeza das coisas. Sou muito intuitivo, eu penso uma coisa, quero, vou fundo, luto por aquilo e consigo. Porque eu brigo muito. Eu sou uma pessoa de luta. E por isso eu cheguei até aqui da maneira como estou. Eu vou buscar, não fico esperando chegar até mim.

Essa forma de pensar diferente, essa música diferente, apesar de todo o sucesso e reconhecimento que você tem, fez com que você se sentisse solitário na sua trajetória?

Bastante. Você vê que tem o grupo baiano, cearense, da Paraíba, mas não tem o grupo de Alagoas (risos). Eu fui sempre muito solitário na minha busca. Embora, justiça seja feita, eu tenha sido buscado muito prematuramente pelos grandes artistas. Quando eu surgi, todos: Caetano, Chico, Roberto Carlos, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa, todos vieram a mim, porque percebiam que estava vindo alguém que valia a pena. Tanto que eu fiz música para todos eles, gravei com todos eles, então não posso me queixar disso. Acho que a ascendência que eu tive está muito na mão desses artistas, eles foram bem responsáveis por isso. Foi uma sorte que eu tive, porque, do jeito que eu precisava de ajuda (risos), sendo quem eu era e como eu pensava — e penso até hoje —, eu precisava de alguém que entendesse isso e viesse me acudir.

Você tem músicas em que canta falando de amor para um homem. Como foi isso na sua carreira? Foi recebido naturalmente ou foi uma questão?

Olha, ao que eu saiba, isso nunca foi recebido de maneira negativa. Porque, quando eu escrevo, estou buscando novas formas, palavras novas… Você pode falar até do mesmo assunto sempre, o que vale é a maneira como você fala. Eu falo muito de amor, por exemplo. Amor é um tema inesgotável, porque amor é a vida. Falo de outros assuntos, mas falo mais de relação humana. Então, quando eu escrevo no feminino, estou certo de que eu estou escrevendo como ser humano. Porque as questões de um e de outro são as mesmas. Elas só são absorvidas e desenvolvidas de forma inerente a cada gênero. Mas o homem e a mulher têm questões iguais em todos os sentidos, não só no amor. É um desafio você escrever no feminino e conseguir ser identificado como a pessoa que escreve, simplesmente. Ali não está em questão o gênero ou o que você passou a ser por causa daquilo. Eu tenho necessidade de escrever às vezes no feminino para me reconhecer melhor. É uma questão de você querer adentrar novos universos, outros mundos. Porque é impressionante como o mundo feminino e o masculino não têm nada a ver e são iguais ao mesmo tempo. Quando eu escrevo no feminino, me ensina muito.

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O racismo ganhou muito espaço nas discussões públicas nos últimos anos no Brasil. Como você vê essa mudança que vem acontecendo?

Olha, o racismo é uma questão estrutural, é uma questão cultural. Para debelar o racismo, não tem instrumento mais eficiente do que a educação. A educação no Brasil está como você sabe: completamente desestruturada, esfacelada. É preciso refundar a educação no Brasil. O racismo, que não é uma coisa própria do Brasil, é mundial, quanto menos educação houver, mais difícil será para combatê-lo no Brasil. A gente tem essa dificuldade. Até porque até os próprios negros precisam compreender o que é exatamente o racismo. Por que nós, negros, temos tanta dificuldade de nos inserir numa sociedade de consumo, para ascender ao mercado (de trabalho), às universidades, as questões que formam um indivíduo. É claro que para o negro o espaço que sobra, depois do branco — que é o instrutor de toda uma sociedade, de todo um universo, que é habitado por negros e brancos —, o negro sabe que ele precisa mostrar dupla capacidade para poder se impor. Isso aconteceu comigo e acontecerá com qualquer outro negro.

Esse conhecimento, então, pode ser transformador.

O quanto antes o negro compreender essas questões, mais ele se beneficiará de caminhos para resolvê-las. Não quero dizer que o sucesso e o dinheiro façam do negro um branco. E o negro também não quer isso. Ao contrário: o negro quer ser cada vez mais negro, cada vez lutar pela sua cultura, pela sua posição no mundo, pela sua arte. Eu acho uma burrice sem par a posição em que se coloca o negro no Brasil. É medo também: a sociedade branca tem medo do negro. Sabe do seu potencial, da sua força. Lutou a vida inteira contra o negro por causa disso também. Isso não é uma coisa apenas da escravidão. Claro, a escravidão fomentou toda essa estrutura de desprezo e de falta de reconhecimento do branco em relação ao negro. Mas eu acho que a coisa também começa daí: o negro precisa entender o que é o racismo, por que ele existe, como ele pode se posicionar nessa questão, e saber como brigar para, não digo resolver, atenuar as coisas de modo que a sua vida flua com mais naturalidade.

Como a sua ascensão social mexeu com a questão do racismo na sua vida?

O racismo se manifesta para mim hoje de maneira diferente. O cara quando fica famoso e tal não deixa de ser negro. Pessoas que não gostam de preto não vão gostar de mim hoje porque eu sou famoso. Agora, se manifesta mais veladamente, porque tem toda uma identidade da pessoa à frente. Tem que romper essa identidade para se manifestar livremente como se manifestaria diante de outro negro. Mas isso não me engana (risos). Eu continuo negro e vou sofrer racismo até o final da minha vida.

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Você vive em ambientes de maioria branca. Como é o sentimento de não ver pessoas como você no mundo onde você vive?

Isso é uma coisa que sempre me incomodou. Mas a vida continua, você precisa viver. O que eu posso fazer e tenho feito é mostrar a minha vida, a minha identidade, a minha história e tentar as pessoas negras de uma realidade que elas precisam conhecer, precisam lidar com ela. Agora, não tem jeito de uma pessoa resolver a questão. Ela só pode ser resolvida, ou pelo menos atenuada, na escola. É a educação. O sujeito tem que saber, desde que entra numa escola, ali pequenininho, que o preto, branco, amarelo são todos iguais, todos têm a mesma potencialidade. Porque os portugueses, ou sei lá quem começou de verdade a escravidão (de africanos), sempre se preocuparam em querer provar que intelectualmente o negro é inferior. E muito negro, por falta de estrutura ou de condições, comprou essa ideia. Não porque quis: foi uma coisa imposta, na verdade. A primeira coisa que, se puder, eu faço, é dizer para um negro: “Não, você é exatamente igual a todo branco. Lute por isso. A sua luta tem que começar por isso, você tem que provar que é intelectualmente capaz tanto quanto qualquer outra pessoa. Você não tem uma estrutura social para demonstrar isso, para desenvolver isso, mas você é igualmente inteligente.” 

Você falou recentemente do quanto se sentiu cobrado por falar lá atrás que esperava o melhor para o Brasil e te chamarem de bolsonarista e atacarem. Com você acha que deve ser a relação dos artistas e política? Artista tem que se posicionar?

Uma pessoa que dispõe de uma tribuna, um microfone, vivendo num país como o Brasil, carente, em construção, uma sociedade à qual falta tudo praticamente ainda, eu acho que ele tem, antes de mais nada, o dever de, tendo oportunidade, esclarecer questões que são primordiais para o crescimento da nação, para o crescimento do povo. Você vive num país hoje difícil até de você tomar posição, porque as coisas mudaram, e a gente não vive num estado de coisas que possa ser chamado de normal. Mas você não vai deixar de se posicionar por isso, porque é maior que você. O Brasil precisa, o Brasil precisa de todos nós. Estamos, cada vez mais, precisando de pessoas que possam ajudar. E eu posso. Eu nem preciso me posicionar nitidamente sobre questões políticas, porque eu já ajudo de outras maneiras, e mesmo assim eu faço isso, porque têm pessoas que têm dificuldade de entender as coisas, a gente precisa esclarecer. Porque eu acho que o povo dispõe dos artistas, entre outras coisas, para ajudá-lo a viver, a crescer, a alcançar, a ultrapassar. E estou aqui para isso.

No seu disco novo, você gravou uma música com o Milton Nascimento pela primeira vez, é até difícil de acreditar que não tenham gravado juntos antes. Tem algo na sua carreira que você tem vontade de fazer e ainda não fez?

O meu projeto de amanhã é acordar com a mesma impetuosidade que acordei hoje. Eu quero sempre ter a vontade de fazer, o desejo, a alegria de criar, de vislumbrar novos horizontes, novas propostas. Isso é o que eu quero que Deus mantenha na minha vida: a vontade de fazer. Eu quero acordar todos os dias com a alegria de sentar e compor uma canção nova.

É difícil envelhecer em público?

É difícil envelhecer. Agora, ao mesmo tempo, é uma glória. Eu quero morrer com 100 anos (risos). Fazendo o que faço hoje ou não, mas respirando, porque eu amo a vida. Eu acho que a vida é o maior bem de qualquer pessoa na face da tarde. Eu, graças a Deus, tenho boa saúde. Eu cuido da minha saúde, eu sou uma pessoa regrada, digamos assim, porque eu gosto da vida. E eu acho que eu tenho muito o que dar ainda, eu tenho muito o que fazer. Então eu só quero que Deus me acorde todos os dias alegria com a qual eu fui dormir a noite passada.

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