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Maria Ribeiro: morte de Moraes Moreira é o fim da ideia de Brasil

“Moraes Moreira era o último grande signo de tudo o que já vínhamos perdendo desde que a geral deu lugar ao camarote", escreve

Por Maria Ribeiro
Atualizado em 22 Maio 2020, 19h18 - Publicado em 1 Maio 2020, 08h00

Pois é. Acabou. Para sempre. E não acabou apenas porque o Moraes Moreira morreu,  e seu desaparecimento encerra um tempo que vinha se dissolvendo sem que nos déssemos conta — o que ficou evidente desde o primeiro instante de sua partida tão bem escrita. Acabou também porque sua morte foi uma espécie de farol retroativo iluminando e ressignificando outros lutos históricos, como o do Maracanã, do João Gilberto, ou mesmo de agora, de todos os brasileiros vencidos pela Covid-19.

A densidade do ar que se instalou na Gávea com a notícia do falecimento do artista baiano em plena pandemia me parece ter sido a do país inteiro, como se as ruas silenciosas de um Rio de Janeiro em quarentena tivessem sido caladas em homenagem a ele. Surgia ali o anti-Carnaval. Moraes Moreira era o último grande signo de tudo o que já vínhamos perdendo desde que a geral deu lugar ao camarote, a democracia deu lugar à barbárie, e o Jorge Ben trocou o sobrenome para Ben Jor.

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Se bem que, agora, pensando melhor, acho que foi antes… Talvez o fim tenha se iniciado há exatos 38 anos, quando a seleção de 82 voltou da Espanha sem aquele caneco, justo aquele, que seria tão merecido. Porque ali, o futebol-poesia — uma espécie de primo-irmão do Carnaval de rua e portanto a representação máxima do país a
que um dia acreditamos pertencer — começou a virar passado. No lugar da ginga, o pragmatismo; no lugar da transgressão, o dinheiro. No lugar da África, Miami; no lugar do Zico, Neymar. No lugar do botequim, o Instagram. No lugar da rua, o condomínio. No lugar dos terreiros, as igrejas evangélicas e, no lugar da paixão, o marketing.

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Escrevo esta coluna no dia da demissão do ministro da Justiça, Sergio Moro, e alguns dias depois da troca do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Sem me aprofundar em questões políticas — até porque existe gente infinitamente mais capacitada para isso —, apenas atento para o fato de que, segundo a matemática da curva baseada na experiência de países como Estados Unidos e Itália, nem sequer chegamos ao pico da crise causada pelo coronavírus ao nosso sistema de saúde. Ou seja, ainda vamos perder muitas vidas.

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Já vimos, no entanto, fotos das valas comuns abertas na cidade de Manaus, já acompanhamos a perda do emprego de milhares de conterrâneos, e alguns de nós, inclusive, já enterramos um parente, como é o meu caso, que velei meu padrasto apenas com quatro pessoas e não pude abraçar minha mãe, ali vendo pela última vez seu companheiro de trinta anos.

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Estamos no meio da peste, e, ainda assim, há quem se dedique a outros assuntos, a exemplo do chefe do Poder Executivo, como acabei de descrever. Acontece que não existe outro assunto. Não há mais nada que importe, nada que não tenha sido cancelado, nada que valha o oxigênio dos que ainda respiram sem a ajuda de um ventilador mecânico, que não seja o fim redefinido pelo ano de 2020. Quando escrevo este texto, o país já tem mais de 3 000 mortos pela pandemia de Covid-19, e todos sabemos que a subnotificação é imensa.

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Mas existe ainda outro fim, para o qual não haverá vacina, e que agora se apresenta irremediável com a morte do mais icônico integrante dos Novos Baianos: o fim de uma ideia de Brasil. Foi Gregorio Duvivier quem escreveu que, em outubro de 2018, caminhando desolado no dia em que Jair Bolsonaro foi eleito, viu Moraes no balcão de uma padaria e então parou de chorar. O país que naquele momento agonizava foi extinto junto com a brasilidade de sua existência, finda no último 13 de abril, e agora somos todos filhos de uma nação sem bandeira.

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Enquanto não ouvirmos as histórias de cada brasileiro morto, não só por causa da Covid-19, mas também pela vala aberta pelo presidente, continuaremos enterrando Moraes Moreira até que dele não restem lembranças nem do mel nem do carneirinho que tão suavemente embalava nossos documentos de identidade. Entramos numa espécie de eterna Quarta-Feira de Cinzas, e o cimento sobre o Maracanã não cessa de cobrir o futuro que agora ficou para trás. Talvez só um hospital de campanha salve aquele gramado, para então salvar um país que um dia cantou os
versos de um baiano flamenguista que pedia a Deus para fazê-lo brasileiro.

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