Chegando aos 80, Caetano, Gil, Milton e Paulinho da Viola brilham nos palcos
Aproximando-se da nova década de vida com as carreiras a pleno vapor, eles dão um belo exemplo de como se manter altamente criativos e com a alma jovem
Grandes nomes de todos os tempos que se expressaram de forma extraordinária por meio da arte deixaram como legado obras vivas, vibrantes e atraentes século após século. Elas não envelhecem porque extrapolam a era e o espaço em que vivem, tocando pessoas de distintas épocas por seu poder de descortinar dimensões humanas imprevisíveis e universais. São clássicos impermeáveis a modismos. É o que ajuda a entender por que um quarteto fantástico da MPB permanece tão atual aos 80 anos — idade redonda à qual todos eles chegam neste 2022 —, embalando e emocionando variadas gerações de brasileiros há mais ou menos seis décadas cada um.
O time de 1942, formado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola e Milton Nascimento, seguiu uma trajetória típica dos que se despregam da média — observaram com atenção o que havia sido feito antes, desconstruíram as velhas fórmulas e encontraram uma linguagem própria, única. “Eles pegam tudo aquilo que vem da geração dos pais deles, desmontam e dizem: ‘O que a gente pode fazer com esse brinquedo?’. Não era bolero, não era sambão, não era bossa nova”, analisa a jornalista Ana Maria Bahiana, autora do Almanaque dos Anos 70. “Não à toa, com eles surge a ideia da música popular brasileira, porque não havia ali um rótulo.”
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A ebulição musical daqueles tempos em que eles começaram a despontar não se restringia apenas ao Brasil. “Se você olha o que aconteceu nos Estados Unidos e na Europa, sobretudo na Inglaterra, é exatamente o que essa geração faz, demolir para reerguer”, pontua Ana Maria, lembrando que os Beatles são egressos do mesmo período (Paul McCartney, aliás, é outro no bonde dos oitentões de 2022). Essa capacidade de criar algo original a partir de um mergulho no passado viria a impactar — e continua impactando — profundamente os que vieram depois. Aos 54 anos, Marisa Monte diz que o quarteto que ajudou a firmar as bases da MPB foi muito importante em sua formação musical e lhe deu “régua e compasso”, citando um sucesso de Gil (que vive no Rio desde os anos 1970, atualmente no Edifício Chopin, em Copacabana). “É uma geração transformadora, que liga passado e futuro de forma definitiva e que está fazendo história”, afirma a cantora.
Para Marisa, a longevidade artística deles se fia em um bem definido conjunto de características, que une inquietação intelectual, experiência acumulada, maturidade artística e um ímpeto incansável de contribuir para a vida cultural. “São clássicos e são eternos”, resume ela, que regravou algumas de suas criações, como Cérebro Eletrônico (de Gil), Dança da Solidão (de Paulinho) e De Noite na Cama (de Caetano). Suas obras são tão grandiosas que, a despeito do que acontece no mundo à sua volta, continuam inabaláveis diante do tempo.
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Os hoje quase oitentões tiveram suas carreiras impulsionadas pelos festivais de música da TV, lá se vai meio século. Eles cresceram em meio a um ambiente que podia lhes ter tosado as asas, o da ditadura militar, mas o antagonismo a ela acabou sendo um fermento em seus processos criativos de modos variados. “Teria sido uma força para destruir, mas, quanto mais poderosa a ditadura se tornava, mais o outro lado respondia. Essa geração tem isso: ela é testada no fogo e nele se fortalece”, avalia a jornalista.
Outra que bebeu da fonte dos quatro, a cantora Roberta Sá considera o conteúdo da obra de cada um deles bastante completo. “A música tem harmonia, letra, melodia. Nada está ali por acaso, nenhum acorde, nota, palavra. Os quatro são grandes estudiosos com inteligência acima da média e trabalham muito, não é só inspiração”, comenta a cantora. Zeca Pagodinho também diz que todos foram influência vital para ele. “Cresci ouvindo essa turma e nunca imaginaria um dia ser amigo do Paulinho, do Gil, do Caetano nem do Milton. Hoje, bebemos e cantamos juntos”, comemora.
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A mescla de canções atemporais com a habilidade para se reinventar muitas e muitas vezes faz com que as apresentações destes altos representantes da MPB sejam concorridas e eles sejam escalados para os relevantes festivais de música do país, quando são vistos por plateias de todas as faixas etárias, do avô ao neto. Caetano cantou na edição de abril do Rock the Mountain, em Itaipava. Gil foi atração do Mita e do Queremos!, e estará no Rock The Mountain de novembro. Milton estava na mira do evento, mas já não tinha datas disponíveis na agenda. Paulinho, por sua vez, iria se apresentar no Universo Spanta, em janeiro, adiado para 2023 por razões pandêmicas.
Criador do Rock The Mountain, Ricardo Brautigam revela que os quatro — e alguns outros nomes egressos da mesma geração — são artistas muito desejados pelos festivais e que contar com pelo menos um desses pesos-pesados confere uma credibilidade preciosa. “Você não está levando só o que é a modinha do momento, mas apostando naquela pessoa que tem uma história e uma música de inequívoca qualidade”, explica Ricardo.
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É comum no mercado musical mundo afora, no brasileiro inclusive, que a exaltação a um artista ceda lugar, em questão de pouco tempo, a um banho-maria, tão logo aquele nome perca a efervescência do início. Pois a geração da MPB que cruzou décadas na ativa conseguiu subverter a lógica do descarte. A junção de profissionalismo com estratégia de carreira, tal qual fizeram seus contemporâneos noutras partes do globo, vem sendo essencial para que se mantenham no topo. “Eles aprenderam o lado business da música, algo que outras gerações não fizeram, ou não fizeram direito”, acredita Ana Maria Bahiana.
A constante renovação de seu trabalho e a conexão com o tempo presente também contribuem para que sigam atuais. É uma turma aberta e conectada com artistas mais novos, uma relação de duas vias, já que os jovens aprendem com eles e eles, por seu lado, oxigenam seu trabalho e ganham uma ponte para chegar a outros públicos. Em 2006, com a Banda Cê, formada por amigos de seu filho Moreno, Caetano mudou sua sonoridade e lançou uma elogiada trilogia. Em seguida, fez um álbum e engatou em uma turnê ao lado dos três filhos, Moreno, Tom e Zeca. Mais recentemente, convidou Lucas Nunes, do coletivo Bala Desejo e da banda Dônica — da qual Tom faz parte — para produzir seu álbum, Meu Coco (2021).
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Estrada semelhante foi percorrida por Gil, que compôs um álbum inteiro para a cantora Roberta Sá (Giro, de 2019), tendo participado de todas as gravações do disco. Em 2020, subiu ao palco do festival Coala com o trio Gilsons, composto por dois netos e um filho. Milton também se ligou a uma talentosa juventude. Ajudou, por exemplo, a impulsionar artistas, como sua afilhada musical Maria Rita. Durante a pandemia, lançou o EP Existe Amor ao lado do rapper Criolo, com participação do pianista Amaro Freitas, e sua turnê de cinquenta anos do Clube da Esquina contou com Zé Ibarra, integrante do Bala Desejo e da Dônica, nos vocais. Paulinho tem o filho, João Rabello, em sua banda. Ele também estendeu à mão à então iniciante Teresa Cristina, ao participar de um álbum dedicado a ele, A Música de Paulinho da Viola (2002). Tem ainda uma relação bastante próxima com Marisa Monte, com quem fez shows e selou uma parceria em Talismã (com Arnaldo Antunes).
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O quarteto — que crava mais uma década de vida um ano depois de outros ícones da música brasileira, como Erasmo e Roberto Carlos, Nana Caymmi e Ney Matogrosso — não dá as costas às tecnologias que invadiram o universo musical. Visionário, em 1996 Gil fez a primeira transmissão de uma música em tempo real pela web no Brasil, tocando a faixa Pela Internet — que dialogava com o primeiro samba gravado no país, Pelo Telefone (1917). A pré-estreia da atual turnê de Milton dava acesso a quem comprasse um NFT com um desenho feito pelo artista. Todos têm presença nas redes — durante a pandemia, Caetano, que vive em um amplo apartamento na orla do Leblon, chegou a virar meme, com direito a piadas da mulher, Paula Lavigne, sobre seu gosto por paçoca e a exibição de um pijama. Calma, que dancinha no TikTok ele não fez e sobre isso até falou em um esquete do Porta dos Fundos do qual participa.
Em ano de celebração, Gil saiu na frente e anunciou a série Em Casa com os Gil, da Amazon, que estreia em 240 países. O reality acompanha a turnê comemorativa Nós, A Gente pela Europa, que conta com a participação dos filhos Bem, José, Preta e Nara, além dos netos João, Flor, Francisco e Sereno, de 5 anos. “O futuro ficou urgente porque muita coisa já virou passado na minha vida. Então o presente é esse inqualificável, o presente é aqui e agora, é imediato e não há o que dizer. Ele é a gente, de um vitalismo profundo”, diz Gil.
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É tanto acervo e história acumulados que, em 14 de junho, foi lançado um museu virtual no Google Arts & Culture, com fotos de Gilberto Gil, além de vídeos e áudios, sob a coordenação da jornalista e pesquisadora musical Chris Fuscaldo. São mais 40 000 imagens e 140 textos sobre o cantor, com entrevistas e depoimentos de amigos como Caetano, Jorge Ben Jor e Gal Costa. Em julho, será relançado o livro Todas as Letras, que reúne a obra do agora imortal da Academia Brasileira de Letras, empossado em abril.
Caetano segue em cartaz com a turnê do elogiado álbum Meu Coco, do ano passado, que acaba de passar pela cidade, com quatro datas esgotadas no Vivo Rio. Ele também virou desenho animado, lançando dois clipes com o Mundo Bita e planeja para agosto um livro que compila suas 400 letras. Milton, que dilacerou corações Brasil afora ao anunciar sua despedida dos palcos, continua com a turnê A Última Sessão de Música, que teve pré-estreia no último dia 11 na Cidade das Artes, no Rio, e termina em 13 de novembro, em Belo Horizonte. A corrida por ingressos foi tão grande que eles se esgotaram em poucas horas, e novas apresentações foram anunciadas.
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Em dezembro de 2021, foi a vez de Paulinho da Viola retomar a agenda de shows e, em 9 de julho, ele sobe ao palco do Circo Voador. Com algumas composições recém-criadas na gaveta, ainda não decidiu que destino dará a elas. Está nos planos um show comemorativo, mesclando clássicos a novas canções, para mais perto de seu aniversário, em novembro. “Enquanto eu estiver bem, tocando, cantando, fazendo o meu trabalho, vou seguir. Não tenho essa preocupação: ‘Ah, eu vou ter de parar’. O que importa é hoje, o momento, agora”, fala Paulinho, de sua casa no Itanhangá, ecoando a frase que dá nome ao documentário sobre ele, Meu Tempo É Hoje (2003). “É claro que eu tenho lembranças, de vez em quando as coisas boas vêm, e aí é ótimo. É legal, como artista, ver que há um reconhecimento do meu trabalho”, diz ele a VEJA RIO em tom suave, sereno.
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Especialistas e não especialistas são unânimes em dizer que vê-los no palco por tantas décadas é um baita privilégio. “Eles são imortais de verdade, vão ficar para sempre na memória, e muita gente que sonhava assisti-los em ação está podendo fazer isso agora”, reforça Ricardo Brautigam. Em meio à euforia, o anúncio da aposentadoria de Milton Nascimento, que recentemente voltou a morar no Itanhangá, onde viveu por anos, causou imensa comoção. “Só vou deixar os palcos mesmo. A música, jamais”, garantiu.
Com 43 discos, entre eles clássicos como o Clube da Esquina (1972), com Lô Borges — eleito recentemente o melhor álbum brasileiro em votação do podcast Discoteca Básica —, detentor de cinco láureas no Grammy, doutor honoris causa pela Berklee College of Music, nos Estados Unidos, Milton é admirado por artistas do mundo inteiro, de Sting a Björk. Diz-se que Elis Regina, uma das maiores cantoras do país, assim definiu o que enxergava como um talento sobrenatural: “Se Deus cantasse, seria com a voz de Milton”. Saber que, depois desta turnê, não será mais possível vê-lo ao vivo deixa uma sensação de vazio, mas há quem tenha a esperança de um chorinho. “A gente ainda está acreditando que no ano que vem ele toca no festival”, confidencia o criador do Rock the Mountain. Dedos cruzados, então, que a fé não costuma faiá.
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