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Prova de fogo: monólogos dominam a programação carioca

Com presença recorde no circuito, gênero é um desafio para qualquer ator

Por Renata Magalhães
Atualizado em 30 jan 2017, 15h02 - Publicado em 28 jan 2017, 11h00
Renato Russo — O Musical, no Teatro Riachuelo: Bruce Gomlevsky estrela o fenômeno de público, em cartaz desde 2006

Renato Russo — O Musical, no Teatro Riachuelo: Bruce Gomlevsky estrela o fenômeno de público, em cartaz desde 2006 (Felipe Fittipaldi/Veja Rio)

Ao longo das quase duas horas de sessão, todo mundo canta junto. Tempo Perdido, Eduardo e Mônica e outros clássicos da banda Legião Urbana ganham o coro da plateia, que acompanha em êxtase a interpretação de Bruce Gomlevsky como se estivesse em um show nos anos 80. O ator é a estrela de Renato Russo — O Musical, sucesso longevo atualmente em cartaz no imponente Teatro Riachuelo, com 999 lugares distribuídos por plateia e balcões. Perto dali, também no Centro, Marcos Caruso domina a atenção do público com desempenho mais sereno, mas não menos empolgante. Ele protagoniza O Escândalo Philippe Dussaert, texto do francês Jacques Mougenot sobre uma surpreendente polêmica no mundo da arte contemporânea. Além de preencher com frequência as 353 poltronas do Teatro Maison de France, a montagem teve a temporada prorrogada, feito raro para aquele espaço, e levou, na semana passada, o Prêmio Cesgranrio de Teatro na categoria melhor ator. Gomlevsky e Caruso são destaques no elenco espalhado por quinze monólogos que estão hoje em cartaz.

Ótimas atuações, aliadas à presença recorde no circuito, jogam luz sobre o gênero, uma prova de fogo para quem sobe ao palco — e também para o espectador. No Rio, a turma que faz fila na bilheteria vem dando sorte: é agraciada com uma saudável tradição de encenações bem-sucedidas. O time atual de atrações é diversificado (veja o quadro com cinco produções imperdíveis na pág. 22). Reúne rostos conhecidos, como Andrea Beltrão e Debora Lamm, ambas pela primeira vez sozinhas no proscênio, e gratas surpresas, a exemplo de Silvero Pereira. No Teatro Poeira, o ator cearense emendou o solo BR Trans, sucesso de público e crítica, a Uma Flor de Dama, seu trabalho no momento. Nos dois, provoca o público (a pensar, principalmente) trazendo à cena questões urgentes sobre identidade de gênero e intolerância. Andrea e Debora foram aos primórdios e enfrentam tragédias gregas. Elas decidiram debutar em monólogo para celebrar seus respectivos aniversários de carreira. No pequeno Poeirinha, em Botafogo, a primeira comemora quatro décadas de trajetória com Antígona, na tradução de Millôr Fernandes para o clássico de Sófocles. Debora, com vinte anos de estrada, defende, no Espaço Cultural Sérgio Porto, Mata Teu Pai, texto de Grace Passô inspirado em Medeia, de Eurípides.

Há muito mais gente no bloco do eu sozinho. Elisa Lucinda e Pedro Henrique Müller dividem a programação da Casa de Cultura Laura Alvim — ele ocupa o porão, com a segunda temporada da comédia dramática O Figurante, e ela reabriu o teatro do espaço, reformado, com A Paixão segundo Adélia Prado, tributo à poetisa mineira. A literatura também ganha corpo em Clarice Lispector & Eu — O Mundo Não É Chato, com textos da autora de A Hora da Estrela e depoimentos pessoais da atriz Rita Elmor costurados ao vivo no Teatro Vannucci. Atriz e cantora tarimbada, Soraya Ravenle é mais uma neófita. Acostumada a partilhar os aplausos com dezenas de colegas em grandes produções, a exemplo dos musicais South American Way e Ópera do Malandro, ela enfrenta sozinha a missão de abordar o pensamento do filósofo paulista Juliano Garcia Pessanha em Instabilidade Perpétua, atração no Centro Cultural Justiça Federal. Outro rosto familiar, Marcelo Serrado recorreu à própria experiência com stand-­up comedy para caprichar no humor em Os Vilões de Shakespeare, peça de título autoexplicativo que estreou no último dia 13, no Centro Cultural Parque das Ruínas, em Santa Teresa.

Sozinho no camarim, Marcelo Serrado elogia a produção enxuta de Os Vilões de Shakespeare: “Com um microfone na mão, posso me apresentar em uma praça”
Sozinho no camarim, Marcelo Serrado elogia a produção enxuta de Os Vilões de Shakespeare: “Com um microfone na mão, posso me apresentar em uma praça” (Felipe Fittipaldi)

O que leva tantos nomes à opção pelo monólogo? Serrado tem sua opinião. “O público ganha a chance de ver atores conhecidos fazendo algo diferente, surpreendente mesmo”, explica. A simplicidade das produções também conta. “Com um microfone na mão, posso me apresentar em uma praça”, diz ele, envolvido com Iago, Shylock, Ricardo III e outros tipos malévolos criados pelo bardo inglês até, pelo menos, o fim de março. Na extensa turma que abraçou a causa do monodrama, quase todos tratam a escolha como um grande desafio, um marco na carreira, mas há outro fator evidente, ainda que não reconhecido abertamente: dinheiro. É fato que a maré não anda boa para a classe. Mecanismos de incentivo fiscal e patrocínios diretos, públicos ou privados, minguaram nestes tempos de crise. Grandes empresas com tradição de apoio às artes, como a Petrobras e os Correios, reduziram o orçamento.

A saída, nesses casos, é o minimalismo. Para apresentar A Alma Imoral, Clarice Niskier não precisa de nada além de talento e um pano preto. Ao longo da peça, que estreou no Rio, em 2006, e atravessa temporadas desde então — já ultrapassou a marca dos 400 000 espectadores e continua em cartaz no Teatro Eva Herz, em São Paulo —, o tecido serve de vestido, saia, lençol, enquanto a atriz, nua em alguns momentos, defende o texto tirado do livro homônimo do rabino Nilton Bonder, um belo passeio por reflexões universais sobre certo e errado, traição e tradição, entre outros temas. Bruce Gomlevsky apostou mais alto. Acompanhado por banda e dependente de maior aparato técnico, desembolsou 100 000 reais para entrar em cena com Renato Russo — O Musical. O retorno veio na forma de sucesso estrondoso. Desde a primeira sessão, em 2006, para celebrar os dez anos da morte do cantor Renato Russo (1960-1996), Gomlevsky já contabiliza mais de 370 récitas, em quarenta cidades do país, diante de 220 000 pessoas. Na lista dos acertos que se recusam a deixar o circuito, porque a plateia não deixa, ainda sobressaem A Descoberta das Américas, com Júlio Adrião, há doze anos encarnando o aventureiro levado ao Novo Mundo em uma caravela de Colombo, e A Casa dos Budas Ditosos, quinze anos de estrada, adaptação do romance de João Ubaldo Ribeiro interpretada por Fernanda Torres.

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Grande desafio para o ator, o monólogo é também um bom teste de nervos (e educação) para os “da poltrona”. Diante de um único artista dominando a cena, fica mais difícil, por exemplo, sair de fininho se a sessão não estiver agradando. Há tanto tempo convivendo com a senhora baiana libertária e libidinosa de A Casa dos Budas Ditosos, Fernanda Torres já perdeu o frio na barriga. “Achei que não existia teatro sem esse nervosismo, mas é maravilhoso entrar em cena consciente. Conheço cada vírgula, cada movimento do texto”, conta. Mesmo assim, ela coleciona histórias sobre reações destemperadas. “Já vi casal brigando, e uma senhora excomungou minha baiana no meio da apresentação”, recorda, sem se abalar. Marcelo Serrado, em Os Vilões de Shakespeare, um divertido passeio por grandes personagens da dramaturgia, aponta a luz do celular como uma distração desnecessária. E Clarice, a estrela desnuda de A Alma Imoral, lembra-se até hoje da vez em que literalmente congelou. Não conseguia entrar em cena, ao ar livre, em uma madrugada na programação da Virada Cultural de São Paulo, com temperatura a 9 graus e mais de 1  200 pessoas à sua espera. “Nesse momento, num monólogo, não há troca de olhares cúmplices”, diz.

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É consenso entre críticos e estudiosos que As Mãos de Eurídice, peça de Pedro Bloch (1914-2004), teria sido o primeiro monólogo encenado no Brasil. O espetáculo estreou no Rio, em 1950, com Rodolfo Mayer (1910-1985), e manteve-se em cartaz por mais de duas décadas e 3 000 sessões. Um fenômeno, o texto ganhou adaptações na Broadway, sob o título Conscience, e na Inglaterra, com produção do astro escocês Sean Connery. “Um monólogo absolutamente bem-sucedido arrisca sufocar toda a potencialidade do ator”, adverte a pesquisadora de história do teatro brasileiro Tânia Brandão. Esse risco, o de se associar para sempre a determinado papel, foi driblado ao longo dos anos por virtuoses como Regina Casé, Paulo Autran, Diogo Vilela e Marco Nanini. Quatro nomes de prestígio, eles transcenderam os personagens, mas serão sempre lembrados, respectivamente, pelo trabalho-solo brilhante em Nardja Zulpério (1988), Quadrante (1989), Solidão, a Comédia (1992) e Uma Noite na Lua (1998). Historicamente forte no Rio, o movimento não parece estar perdendo fôlego. Gregorio Duvivier, Luis Lobianco e Yasmin Gomlevsky são alguns atores que preparam espetáculos que devem estrear ainda em 2017 (veja o quadro abaixo).

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Marcos Caruso caminha a passos largos rumo ao panteão dos monólogos de sucesso histórico. Além de ficar com o Cesgranrio de Teatro, é candidato forte, na mesma categoria, ator, a outros quatro troféus: Associação dos Produtores de Teatro (APTR), Shell, Prêmio de Humor e Botequim Cultural. Tarimbado, do alto de seus mais de quarenta anos de carreira, o eterno Leleco, de Avenida Brasil, e hoje também na TV como Seu Peru, no humorístico Escolinha do Professor Raimundo, alivia o peso da responsabilidade em cena de maneira peculiar. Antes das sessões de O Escândalo Philippe Dussaert, ele circula pelo saguão do teatro, troca beijinhos e apertos de mão, bate papo e tira selfies com a maior paciência do mundo — curiosamente, Andrea Beltrão, no Teatro Poeira, e Marcelo Serrado, no Parque das Ruínas, adotam o mesmo comportamento. “A gente tem de receber bem as pessoas na nossa casa”, justifica-se Caruso. Mais de uma vez, terminado o espetáculo, o ator deixou o Teatro Maison de France dentro de uma das vans que transportam inconfundíveis grupos de espectadoras da terceira idade. Durante as caronas, come bolo, troca ideias e ouve opiniões sobre sua atuação. “Ele é muito simples, ao vivo é bem diferente do Seu Peru, e bastante simpático. Antes de uma sessão, conversamos um bocado, o Marcos Caruso reservou para mim a mesma atenção que deu à atriz Regina Duarte, lá também para ver a peça”, lembra, orgulhosa, a aposentada Ocirema Mattoso, 65 anos, que já assistiu à montagem três vezes. Fica a dica, portanto: estrelas de monólogos estão de fato sozinhas no palco, mas, quando acertam a mão em cena, ganham a inestimável companhia do público — seja no saguão do teatro, seja na plateia lotada ou dentro de uma van.

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