Fausto Fawcett vira tema de documentário: “Minha música não envelheceu”
Longa de Victor Lopes mostra as histórias e contradições do artista de 67 anos, que é, ao mesmo tempo, um nome cult e autor de grandes sucessos
Ele fez o público cantar músicas com palavras improváveis como “Exocet” e compôs aquela que talvez seja a melhor definição resumida do Rio de Janeiro, “purgatório da beleza e do caos”. Autor de grandes sucessos, como Kátia Flávia, a Godiva do Irajá (1987), gravada por ele; Rio, 40 Graus (1992), registrada por Fernanda Abreu com participação dele; e Balada do Amor Inabalável (2000), do repertório Skank, entre outros, e, ao mesmo tempo considerado um artista cult, Fausto Fawcett tem sua trajetória narrada em um documentário de Victor Lopes que chega aos cinemas nesta quinta (25).
Aos 67 anos, o protagonista de Fausto Fawcett na Cabeça conta, em entrevista a VEJA RIO, que gosta desse paradoxo. “Claro que isso tem um preço. O preço é esse: a precificação é menor (risos)”, diverte-se. “Eu gosto de dizer que eu dou umas mordidas no mainstream, mas que o habitat criativo é uma encruzilhada na literatura, filosofia, música e urbanismo. As apresentações acabam tendo um caráter mais teatral. Um show com uma pegada mais popular é uma mistura de karaokê com aeróbica, né? Mas ali você tem que dar uma prestada de atenção. Esse é o ponto, digamos, underground ou cult do negócio, porque são histórias contadas”, analisa.
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Alternando imagens de arquivo e cenas recentes — algumas delas gravadas durante a pandemia —, o longa passa pelo tempo em que Fawcett recitava textos nos pilotis da PUC, a época em que Fernanda Abreu integrou os Robôs Efêmeros, um grande show no período em que Kátia Flávia estourou e o espetáculo Básico Instinto e as dançarinas louras que causaram sensação, entre outros momentos marcantes, além de mostrar seu processo criativo e abordar temas como o que mais deixa o protagonista visivelmente desconfortável: o amor. Os registros mostram, também, que a obra de Fawcett passou no teste do tempo, já que em geral os temas apresentados seguem fazendo sentido na sociedade de hoje.
Para ele, esse distanciamento de sua obra que o tempo trouxe permitiu que ficasse visível a contundência de seu trabalho. “Os aspectos ali, desde o Básico Instinto, das sensualidades, passando pelos assuntos cibernéticos e urbanos, por exemplo que tem na música Sílvia Pfeifer, ou nos assuntos que eu toco relacionados a uma barbárie como civilização: qual a ressonância desses temas hoje? Eu acho que muita, né? O principal sentimento é de orgulho, porque tem uma atualidade. Você falou coisas que estão acontecendo”, observa.
Com efeitos visuais e números musicais-performáticos, o filme de Victor Lopes tem uma estética que vai ao encontro da obra de Fausto Fawcett, com suas crônicas-críticas da sociedade e personagens-fetiche, sobretudo as louras (Sharon Stone, Brooke Shields e as musas imaginárias Viviane Vancouver e Kátia Flávia, entre outras). Durante a apresentação da música Facada Leite-Moça, a artista visual Aleta Valente (que usa no Instagram o nome Ex-Miss Febem, tirado da letra de Kátia Flávia, e que tingiu o cabelo de louro para o filme), realiza uma performance. “O modo como o Victor conduziu, filmou, planejou, como uma ópera visual cinematográfica, eu achei brilhante”, elogia o artista.
As cenas atuais alternam-se entre as ruas de Copacabana — quartel-general do artista por mais de 50 anos —, a quitinete onde mora Fausto, a boate Fosfobox (hoje Substation) e locações como o esqueleto do Museu da Imagem e do Som, em Copacabana, que, ainda no concreto e com tubos metálico de ar-condicionado, é um cenário à altura das imagens distópicas que volta e meia povoam as letras e livros do artista. Fawcett, que se assume pessimista (“ainda mais dentro de uma tradição ocidental cética”, pontua), diz que os rumos que o mundo tomou não o surpreenderam.
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Ele cita questões presentes em seu livro Favelost, lançado em 2012, para mostrar que já havia captado algumas tendências. “Escrevi em 2010. Era para ser uma espécie de Canudos, para onde iam várias seitas de fundamentalistas do consumo. Ao mesmo tempo, é um lugar com onde você tem uma urbanização de todas as profissões, da vida das pessoas, tudo acontece, não há estabilidade de emprego, de relações etc. Foi há 14 anos, então o rumo da humanidade não surpreendeu“, garante.
Ele admite, no entanto, que chama a atenção “a variedade de bizarrices e extremismos variados” que existem hoje. “Chama atenção como as coisas ficaram aceleradas e celeradas”, brinca. “Você pode apelar para religião, filosofia, política, mas parece que tudo é insuficiente para situar as pessoas. Então é só pegar o noticiário ou as plataformas digitais que você vê: desde procedimentos estéticos kamikazes a posicionamentos políticos dos mais bizarros, que de política não têm nada”, exemplifica.
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Fawcett observa também que uma das ressonâncias de sua obra é que, se talvez hoje apontassem uma objetificação das dançarinas de seu show, devido às discussões de gênero recentes, ao mesmo tempo há muito mais exposição dos corpos. “A internet explodiu tudo, né? Uma caixa de pandora aconteceu, a humanidade está uma fratura exposta”, acredita. “Tem muito mais exploração [dos corpos] e, ao mesmo tempo, tem muito mais indiferença também, justamente porque tem muita coisa sendo apresentada, jogada etc. E aquele corpo das meninas, com uma certa barriguinha, não existe mais. Hoje o corpo é fitness, mais trabalhado e artificializado, às vezes nas raias da loucura, né? Pelo amor de Deus, gente bonita acaba se enfiando em procedimentos estéticos”, critica.
Por falar em Favelost, o livro inspirou Favelost – O Disco, lançado por Fawcett ao longo do primeiro semestre de 2024 nas plataformas digitais. As nove faixas têm letra dele Fausto Fawcett e melodia de Jarbas Agnelli. O lançamento acontece 31 anos depois do álbum mais recente de Fausto, Básico Instinto (1993). Nesse meio-tempo, ele se dedicou aos livros e a compor para outros artistas gravarem. Agora, se prepara para apresentar o show com o novo repertório.
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E, embora garanta ter um “namoro firme” com o pessimismo, ele frisa que todos somos paradoxais, e com ele não é diferente. “Nos bastidores, o Roberto [Berliner, produtor do longa] me perguntou: ‘Como é que você é uma pessoa gentil, ética, e escreve as barbaridades que escreve?’. Eu não preciso ser bárbaro para escrever aquilo. Para se comunicar com as pessoas, [você] tem que prestar atenção no mundo, e não apenas colocar o que você gostaria que fosse. Então, está tudo junto: você vai ter momentos de singeleza, de cura, das várias faces do amor, mas isso tudo está cercado por pancadaria, ódios, egoísmos, raiva, desencontros com o mundo. E acaba sempre escorregando no pessimismo, mas como uma espécie de tática, porque funciona melhor: se você não esperar muito, não se decepciona.”