Botafogo ganha point descolado fora do eixo tradicional
A chegada de novos bares, cafés e restaurantes dá início ao processo de revitalização de uma região até então pouco explorada no bairro
Por favor, onde fica a Rua Fernandes Guimarães?” Pode apostar: mesmo quem circula à vontade por Botafogo terá alguma dificuldade para responder à pergunta. Isso certamente não vai ficar assim por muito tempo. Situada em uma área de trânsito menos intenso e, durante anos, degradada pela presença incômoda de antigos canteiros das obras do metrô, a escondida Fernandes Guimarães despontou. Devagar, devagarinho, junto com trechos até outro dia desprezados de vias vizinhas, como a Arnaldo Quintela e a Dezenove de Fevereiro, formou o mais novo point do bairro, ocupado por cafés, bares, restaurantes e outras opções de lazer. São pequenos negócios de perfil caseiro e proposta descolada que, somados, vêm conquistando o público na base do boca a boca, real e virtual. Em alguns casos, a exemplo do bar da cervejaria Hocus Pocus — inaugurado em setembro do ano passado —, o movimento boêmio já se espalha pela calçada até altas horas. Assim, Botafogo ganhou mais um baixo, consolidando a sua vocação própria para a diversão e impulsionando seu mais recente e bem-vindo processo de revitalização.
Certa predisposição à mistura, que leva o bairro a abrigar democraticamente cenários suburbanos e cosmopolitas, pés-sujos e restaurantes de alto gabarito, já inspirou o apelido BotaSoHo, trocadilho com o descolado SoHo, em Manhattan, Nova York. Também oriundo de Nova York, mas radicado no Rio, o americano Sei Shiroma abriu há pouco mais de um mês, na Rua Arnaldo Quintela, a South Ferro, sucursal arrumada da premiada pizzaria Ferro e Farinha, que mantém no Catete. Segundo ele, o lugar ao qual acabou de chegar, antes um tanto abandonado e repleto de antigas oficinas mecânicas, está mais para “East Botafogo”. Lá, Shiroma preparou-se para o que desse e viesse. Serve seu forte, fatias de massa alta e coberturas de sabores originais, além de itens de confeitaria, brunch nos fins de semana, pratos no almoço e coquetéis. “Isto aqui é a minha Nova York, com seus típicos holes in the walls”, declara o chef, fazendo referência a áreas como East Village, East London ou East Berlin, promovidas de reduto underground a lugar da moda. A propósito: a expressão em inglês, em tradução literal, quer dizer “buracos nas paredes”, definição para pequenos e charmosos espaços de garagem nos Estados Unidos.
Os novos donos do pedaço têm bastante em comum: são jovens, formaram sociedades de amigos ou casais e muitos investem no ramo de comes e bebes pela primeira vez. Todos apostam em projetos originais, em vez de franquias, e, até agora, comportam-se como bons vizinhos. O pizzaiolo Shiroma volta e meia toma um cafezinho no CoLAB, aberto desde agosto. Quem trabalha nos arredores costuma cortar o cabelo no Salão Azul, em uma vila na mesma rua, criado em abril do ano passado por Mariana Sixel e Rafael Fernandez. Completando a ciranda, Mariana convenceu a amiga Carol Monteiro a fundar em uma casa ao lado da sua o Fica Café, cujo cardápio também está disponível no salão. A amistosa comunidade formou-se ao acaso. “Demos sorte. Apesar de ser um bairro legal, acessível, não havia nada por aqui e não sabíamos que outros negócios estavam por abrir”, diz a cabeleireira Mariana. Dono do misto de cafeteria e bar CoLAB, o engenheiro Rodrigo Abe rodou a cidade em busca do ponto ideal. No Leblon e em Copacabana, o valor das luvas (taxa cobrada pelo ponto) chegava a 200 000 reais, seu orçamento integral. Foi durante um passeio de bicicleta que encontrou o endereço em Botafogo, no lugar de uma oficina desativada. Reformado, seu espaço oferece desde kombucha, a bebida saudável da vez, até cerveja gelada noite adentro. Dominic Parry, inglês, e a mulher, a brasileira Selene, donos do bistrô de vinhos Winehouse, também no bairro, gostam de ir até ali com o dia ainda claro, para o café da manhã. “É o único lugar no Rio em que acho o full english breakfast. Bato ponto aqui”, diz ele.
A variedade de opções em uma área reduzida — às vezes, na mesma loja — vem seduzindo cariocas de qualquer parte da cidade. “Estou em Botafogo quase todos os dias”, reconheceu o cineasta João Atala, morador da Gávea, enquanto esperava seu pedaço de pizza no South Ferro. Na mesma noite, o publicitário Filipe Andrade, outro frequentador do novo point, foi conferir a hamburgueria Legião Carioca, fundada em novembro de 2016, na Rua Arnaldo Quintela, e já notou outras mudanças no entorno. “Até o boteco da esquina, mais antigo, já botou música ao vivo, está melhorando o nível por causa da concorrência”, observa. Um pioneiro no desbravamento dessa parte de Botafogo foi o bar Caverna, aberto em meados de 2014, na Rua Assis Bueno. “Eles mostraram que havia esse potencial. No início, eu tinha medo de abrir por aqui; agora, acho que o lugar vai ferver em 2017”, acredita Luciana Feijó, sócia, com o marido, Marcelo Ávila, da Legião Carioca.
Até bem pouco tempo atrás, não havia razão para tanto otimismo. O conjunto de ruas de Botafogo que abriga o novo point do bairro era um lugar perigoso. Encerrado o horário comercial, as portas das oficinas baixavam, produzindo um cenário deserto. Em 2014, foram registrados na 10ª delegacia 1 310 roubos na área, mais de três por dia. Naquele mesmo ano, o 2º Batalhão da Polícia Militar teve o endereço que ocupava, na Rua Real Grandeza, vendido. A tropa foi transferida para a Rua Álvaro Ramos, 155, terreno inicialmente reservado à Estação Morro de São João do metrô, um projeto abandonado há mais de duas décadas. Com a chegada das forças de segurança, seguida de simples melhorias na iluminação, o panorama mudou. Morador da área, o chef Thiago Flores pensou em se mudar dali quando a mulher engravidou: “As ruas eram escuras, muitas casas abandonadas viravam alvo de pichação, tinha até boca de fumo do lado do meu edifício”. Agora, os planos são outros: ele continua vivendo por lá e, até o Carnaval, vai abrir o bar 1928, na Rua Álvaro Ramos, quase esquina com a Fernandes Guimarães, ao lado dos sócios Bruno Magalhães (do Botero, em Laranjeiras) e Paulo César Ferreira (do La Esquina, na Lapa). Nesse perímetro, até a valorização do metro quadrado destoa do que acontece na vizinhança. Enquanto o preço no bairro como um todo teve uma queda de 2,1%, as ruas Dezenove de Fevereiro, Arnaldo Quintela e General Polidoro atingiram crescimento de 2,9%, 6,1% e 9,1%, respectivamente, segundo o Sindicato da Habitação do Rio de Janeiro (Secovi Rio), e treze empreendimentos imobiliários foram lançados na área desde 2014.
O progresso recente do bairro passa por investimentos em negócios de comes e bebes, como cafés, bares e restaurantes. Prova disso é que Botafogo se tornou um campeão de baixos (veja o quadro acima). São ambientes concorridos, mais ou menos bagunçados e cheios de vida. Um deles é o da Rua Nelson Mandela, aberta em 2009, diante de uma bela praça, para finalmente substituir outro canteiro de obras do metrô fechado por mais de duas décadas. Hoje, a via é movimentada todos os dias, com muita gente trabalhando e consumindo em mesas espalhadas pelas calçadas diante de doze estabelecimentos, a exemplo do Boteco Colarinho, do restaurante árabe Harad e da delicatéssen Le Dépanneur. Nos seus primórdios, a paisagem do bairro era bem diferente. Chácaras dominavam a região. Uma delas foi usada pela princesa Carlota Joaquina, no começo do século XVIII, para se refugiar do calor da Quinta da Boa Vista e do marido, dom João VI, não necessariamente nessa ordem. Na década de 20, a hoje movimentada Rua Voluntários da Pátria ainda era um cantinho aprazível, com apenas 132 casas construídas. O recanto sossegado dos tempos do Império cresceu de forma atropelada e ganhou a má fama de bairro de passagem, mera ligação entre seus primos ricos da Zona Sul e o Centro. Agora, é destino da badalação. Nos dias atuais, Botafogo é uma festa.