Massimo Bottura replica na Lapa o Refettorio Ambrosiano
Chef do melhor restaurante do mundo, o italiano vai servir, ao lado de ilustres colegas de profissão, 5 000 refeições gratuitas à população carente
Tomado por uma multidão de 10 000 atletas e 500 000 turistas, o Rio estará sob o olhar atento de mais de dois terços da população do planeta a partir de sexta-feira, 5. Tamanha projeção transforma a cidade em um cenário espetacular para as mais variadas ações de marketing e promoção de países, empresas ou celebridades ligadas — ou não — ao mundo esportivo, bem como em uma poderosa vitrine para causas e ações de impacto. É em busca dessa visibilidade que o italiano Massimo Bottura desembarca no Galeão nesta semana. Dono da Osteria Francescana, restaurante localizado na cidade de Módena e recém‑eleito o melhor do mundo pela revista britânica Restaurant, o chef traz na mala um projeto arrojado e aterrissa cercado de 45 colegas ilustres. Da Europa, por exemplo, virão o francês Alain Ducasse e o espanhol Andoni Luis Aduriz, enquanto do Peru chegará Virgilo Martinez — os três com reputação inquestionável à frente das panelas. Do Brasil, somam-se ao time Claude Troisgros, Roberta Sudbrack, Felipe Bronze e Katia Barbosa, além de Alex Atala. Essa equipe portentosa dará expediente em um restaurante que está sendo montado na Lapa, o RefettoRio. Ali, em parceria com a ONG Gastromotiva, trabalharão com os mestres-cucas estrelados quarenta voluntários, entre cozinheiros e pessoal de salão, que servirão para a população carente 5 000 refeições gratuitas durante a Olimpíada, em uma ação social sem precedentes no Rio. “Mais do que alimentar quem tem fome, o projeto pretende mudar uma cultura, fazendo as pessoas pensar num mundo mais sustentável. Esse é nosso principal desafio”, adiantou o italiano a VEJA RIO.
O projeto capitaneado por Massimo Bottura no Rio enfrenta um problema crucial: o desperdício de alimentos. Segundo o IBGE, 7,2 milhões de pessoas vivem no país abaixo dos padrões ideais de nutrição, ao passo que o montante de alimentos jogados fora daria para alimentar quatro vezes essa população. Só no Rio, estima-se que por volta de 1 300 toneladas de produtos alimentícios ainda em condições de consumo são descartadas diariamente, o suficiente para matar a fome de cerca de 830 000 pessoas. Por isso, a matéria‑prima para os pratos do RefettoRio virá do excedente dos dois caterings que atenderão a Vila Olímpica, Sapore e Behind, além da Benassi, a maior fornecedora de hortifrutigranjeiros do país. São ingredientes que seriam descartados por estar prestes a vencer ou fora do padrão de comercialização, ainda que próprios para o consumo, como frutas, verduras e legumes amassados ou malformados.“Não é só um exercício de criatividade, é também uma experiência transformadora. Com a ascensão da cozinha autoral e dos chefs, nunca tivemos tanta voz e projeção. Temos a obrigação de usar isso a favor da nossa sociedade”, reforça Alex Atala, amigo do italiano. O paulistano exibirá seu talento no RefettoRio, em 11 de agosto.
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Quem imagina a iniciativa de Bottura como um bandejão melhorado vai se surpreender com os pratos e as instalações do RefettoRio. Ali, o mais exigente gourmand encontrará comida e ambiente de categoria internacional. Montado em um terreno estreito, o restaurante será erguido em tempo recorde (apenas 59 dias), graças à colaboração de diversos profissionais renomados que aderiram à empreitada sem nada cobrar. “Será maravilhoso fazer parte de um projeto que envolve a comunidade local e um tema que para nós, cozinheiros, é fundamental: a alimentação com qualidade”, comemora a chef Roberta Sudbrack, que doou todos os equipamentos de sua antiga cozinha, reformada no fim do ano passado. No que diz respeito à decoração da casa, paredes de pedra e tijolo de uma antiga construção, reveladas durante a reforma, servirão de pano de fundo para obras de artistas como Vik Muniz. Os comensais, cadastrados por organizações sociais que atuam no entorno, serão acomodados em móveis desenhados pelos irmãos Humberto e Fernando Campana. “Esse é um exemplo que deveríamos replicar na França”, diz Pierre Lurton, executivo-chefe da produtora dos vinhos Château d’Yquem e Cheval Blanc, dois dos mais prestigiados — e caros — do mundo. Lurton exercerá o papel de garçom em 18 de agosto, data em que o conterrâneo Alain Ducasse, dono de um prestigiado império gastronômico, estará à frente do fogão.
Pôr de pé um projeto como o ReffetoRio exige um esforço fora do comum. O tour de force começou no ano passado, durante a Expo Milano. Uma das atrações da feira era justamente o Refettorio Ambrosiano, concebido por Bottura, 53 anos e pai de dois filhos, com a intenção de combater o desperdício de alimentos. Ali, durante seis meses, sessenta chefs internacionais preparam refeições para sem-teto milaneses. Em 2015, um desses cozinheiros era justamente David Hertz, criador da ONG Gastromotiva, entidade que capacita jovens para o mercado de trabalho de alimentação. “Acho que eram umas 7h15 quando o David me disse que precisávamos repetir a experiência no Rio”, recorda Bottura. “Eu lhe disse que tocasse a iniciativa e, se o projeto avançasse, que poderia contar comigo.” Foi então que começou uma prova de obstáculos. Primeiro para conseguir um espaço, finalmente cedido pela prefeitura do Rio. “Era uma fatia de nada em meio a dois prédios”, recorda Bottura. Depois, em 10 de março, muito perto de acabar o prazo para a captação de fundos e iniciar a obra a tempo de abrir na Olimpíada, não havia um real em caixa. Disposto a levar a ideia adiante, o italiano raspou os cofres de sua fundação e disponibilizou 200 000 euros à iniciativa (cerca de 750 000 reais), o suficiente para cobrir apenas metade dos custos de construção. O restante veio da Coca-Cola, uma das patrocinadoras dos Jogos Olímpicos. “Consideramos esse projeto importantíssimo pelo fato de ter sido desenhado de forma totalmente sustentável”, diz Flavio Camilier, vice-presidente da empresa para a Rio 2016.
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As atividades do RefettoRio não cessam com o fim do megaevento esportivo. A partir de setembro, quem assume o projeto é a Gastromotiva, de Hertz, por pelo menos mais dez anos. O lugar ficará aberto diariamente com o conceito “pague um almoço e deixe um jantar”, para disseminar o movimento da gastronomia social e continuar alimentando gratuitamente, à noite, os mais pobres. O espaço funcionará ainda como um restaurante-escola, com projetos de inclusão social, workshops sobre alimentação saudável, além de oficinas sobre o aproveitamento de alimentos. “Queremos chamar atenção durante a Olimpíada, mas o mais importante é deixar um legado efetivo”, explica Hertz. Exemplos de ações positivas por meio da comida não faltam. Em Nova York, o programa City Harvest promove, desde 1982, o recolhimento de alimentos prestes a ser descartados e hoje alimenta cerca de 1,4 milhão de cidadãos por ano. Na França, o governo, inspirado pelas ações de Bottura e seus companheiros, aprovou lei que obriga varejistas a doar a instituições de caridade alimentos que estejam fora dos padrões regulamentares para o comércio, como de tamanho e formato. “Isso é incrivelmente importante. Nunca antes na história os chefs influenciaram um governo”, entusiasma‑se o italiano, que montou a ONG Food for Soul para replicar o Refettorio Ambrosiano mundo afora. Em 2017, a iniciativa ganhará filial em Montreal, no Canadá. Paralelamente, estarão em andamento unidades em Bolonha, Módena, Turim, Palermo, Nova York e Berlim.
A maré de boa vontade da turma da gastronomia é apenas uma entre as tantas ações que as empresas patrocinadoras e parceiras da Olimpíada deixarão para o Rio (veja o quadro na pág. 24). Parte dos recursos investidos afetará diretamente a vida dos cariocas que vivem em áreas menos abastadas da cidade. Muitas empresas e governos, ao se expor ao lado dos anéis olímpicos, estão deixando contrapartidas em uma miríade de projetos, a maioria deles ligada a esporte e educação. Mas há intervenções bem visíveis em outras áreas. A americana General Electric (GE), patrocinadora do Comitê Olímpico Internacional, substituiu o antigo sistema de iluminação do Parque do Flamengo por 1 600 holofotes de LED controlados por computador. “Nossa preocupação é que a cidade tenha ganhos reais com os Jogos. Ficamos orgulhosos de saber que os cariocas já estão aproveitando melhor o Parque do Flamengo à noite”, afirma Alfredo Mello, responsável pelas ações ligadas à Olimpíada na multinacional. Os países que se interessaram em montar suas casas aqui também deram sua contrapartida. Para ocupar o Clube Costa Brava e um espaço no Arpoador, o governo italiano reformou uma creche na Rocinha e uma quadra de esportes na Cidade de Deus. Os Jogos ainda reverterão em doação de equipamentos de ginástica para ONGs, oferta de computadores para as Naves do Conhecimento, reforma de campos e quadras poliesportivas e até na doação de uma maquete do Rio feita em Lego para o recém-reformado Museu da Cidade. Sob a nuvem de incertezas que paira sobre o futuro da cidade depois dos Jogos, tamanha herança não deixa de ser uma injeção de autoestima.
* Colaborou Pedro Moraes