O desafio do mestre Ivo Pitanguy
Depois de sete meses afastado, o cirurgião plástico volta à clínica de Botafogo e enfrenta a missão de definir o futuro do império que criou
No auditório lotado, um grupo de aproximadamente trinta estudantes fez um silêncio reverente quando o mestre chegou. Vestido com um terno azul, aparência frágil, cabelos ralos e conduzido em uma cadeira de rodas, ele foi recebido pela plateia em pé. E todos assim permaneceram até que Ivo Pitanguy fosse acomodado por dois assistentes na mesa principal, junto a uma tela de projeção. Depois de sete meses de convalescência de sérios problemas de saúde, o cirurgião plástico mais famoso do país retornou no último dia 13 ao ambiente em que reinou absoluto por mais de cinco décadas, no bairro de Botafogo, e onde operou mais de62 000 pacientes. Frequentada por artistas, celebridades internacionais, princesas e sheiks árabes, a clínica, fechada desde janeiro, voltou a ter movimento naquele dia, com a presença do homem que é a razão de ela existir. Munido de um microfone do tipo headset, com a voz fraca — em alguns momentos inaudível — e um pigarro persistente, o “professor”, como é chamado pelos discípulos, examinou sete pacientes do instituto que leva seu nome, baseado na Santa Casa de Misericórdia, e deu instruções de como deveriam ser feitas as operações. Às vésperas de completar 93 anos (em 5 de julho), arrematou as orientações com uma aula de quarenta minutos sobre técnicas de cirurgia de mama. “Eu não quero parar. Enquanto o trabalho me der prazer e puder ajudar as pessoas, vou continuar”, diz o médico que dedicou a vida a esculpir silhuetas e a apagar os sinais do tempo do rosto e do corpo de algumas das mulheres mais belas do planeta.
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O encontro com os alunos da pós-graduação em cirurgia plástica da Santa Casa, um curso criado por ele no início da década de 60, deixou claro o esforço hercúleo de Pitanguy para continuar ativo. Esse é um desafio que rivaliza com a complexidade da tarefa a que ele ainda se propõe: conduzir à sua maneira o destino do império de cirurgia plástica que construiu. No complexo, composto de dois imóveis — um casarão centenário de dois andares e um prédio anexo de quatro pavimentos —, não se atendem mais pacientes. A recepção, com as revistas cuidadosamente empilhadas sobre a mesa, e os consultórios, decorados com móveis dos anos 1980 e muitas obras de arte, permanecem como se fossem uma cápsula do tempo, impecáveis e vazios. O mesmo acontece com o centro cirúrgico e a ala de internação, com quinze quartos, onde eram feitas até trinta intervenções por dia. Dos setenta empregados que trabalhavam ali nos tempos em que a clínica faturava em torno de 1 milhão de dólares por mês, restaram os porteiros, uma bibliotecária, duas secretárias e o pessoal da limpeza. A estrutura mínima foi mantida para servir ao prédio anexo, onde os estudantes do curso criado por Pitanguy têm aulas teóricas no auditório, duas vezes por semana. E mesmo com a parte médica fora de funcionamento, a clínica recebe mais de vinte telefonemas diários de pessoas do mundo todo que sonham em se consultar com o mestre das intervenções plásticas milimetricamente calculadas. “Não quero que ninguém toque em nada até eu resolver o que vou fazer”, decreta Pitanguy.
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Dotado de um caráter centralizador e personalista, o cirurgião sempre comandou com mãos precisas — e pulso forte — os negócios. Há cerca de uma década, Pitanguy começou a ensaiar um processo de transição, cercando-se de profissionais de sua confiança e dedicando-se mais à supervisão das operações. Nos últimos dois anos, deixou, de fato, de operar. Ele examinava os pacientes, indicava a técnica a ser usada, mas as cirurgias eram feitas por sua equipe. Entretanto, o professor nunca se afastou realmente — e os clientes sempre fizeram questão de ouvir sua opinião. No ano passado, uma sucessão de problemas de saúde tirou Pitanguy de cena. Em setembro, ele estava na França quando precisou se submeter a um exame com contraste. O componente provocou tamanha reação em seu organismo que desencadeou uma falência renal. Mesmo assim, o cirurgião fez questão de voltar para o Rio. Ele recorda que sua situação era tão grave que o comandante do voo cogitou fazer um pouso de emergência em três lugares: em Casablanca, no Marrocos, na Ilha do Sal, no meio do Atlântico e, por fim, em Fortaleza. Quando chegou aqui, uma ambulância estava de prontidão na pista para levá-lo diretamente ao Hospital Samaritano, onde permaneceu por dois meses. Desde então, o médico foi internado outras seis vezes. Hoje, além de tentar contornar uma labirintite, ele tem uma rotina que inclui horas de fisioterapia e sessões de hemodiálise, às quais se submete em casa, no Alto da Gávea. Para manter o hábito da leitura, uma de suas paixões, precisa livrar-se da catarata. “O problema de envelhecer é que a cabeça continua funcionando muito bem, mas o corpo não acompanha”, resume. “É difícil passar o bastão, porque as pessoas não procuram a clínica: elas querem ser atendidas por mim”, enfatiza.
Pitanguy formou mais de 550 herdeiros — estudantes de quarenta países já frequentaram a sua pós-graduação, que tem em parceria com a PUC-Rio e o Instituto Carlos Chagas —, mas nunca se preocupou em fazer, de fato, um sucessor. Embora tivesse dezenas de assistentes brilhantes na clínica, sempre deu a última palavra. “É inegável que ele é um profissional fora da curva. Além do talento e da disciplina, sempre teve um senso estético e um carisma descomunais”, comenta Carlos Fernando Gomes de Almeida, um dos cirurgiões plásticos mais concorridos do país, que passou pela sua escola. “Seu nome virou quase sinônimo de milagre. Ele nos ensinou que nunca se tira a esperança de um paciente. Temos a obrigação de buscar soluções”, acrescenta outra discípula, Bárbara Machado, que foi sua assistente por quase 25 anos. A cirurgiã chegou a ser cotada para futura comandante do império Pitanguy, mas comecou a se dedicar exclusivamente ao próprio consultório, a partir de janeiro, em função da desativação do complexo. Estima-se que, até o fim do ano passado, manter a clínica aberta custava à família cerca de 400 000 reais por mês. E, embora seja o desejo do mestre, a possibilidade de o centro médico voltar a funcionar nos moldes antigos é considerada remota.
Negócios escorados em personalidades marcantes costumam se transformar em um quebra-cabeça quando se trata de sucessão. Normalmente, a solução está na própria família, como aconteceu na conceituada Clinica Planas de Barcelona, fundada pelo cirurgião plástico Jaime Planas Guasch, em 1971, e hoje uma das mais importantes da Europa. Ela tem no comando três herdeiros do fundador, dois deles cirurgiões conceituados. Sob esse aspecto, o clã Pitanguy vive uma encruzilhada. Dos quatro filhos do professor — Ivo, Gisela, Helcius e Bernardo —, apenas Gisela, de 57 anos, enveredou pela medicina, e atuou como psicoterapeuta na clínica, sem envolvimento direto com a área cirúrgica. Atualmente, três netos prometem seguir as pegadas do avô, todos filhos de Gisela. O mais velho, Antonio Paulo Pitanguy Müller, 29 anos, filho do também cirurgião plástico Paulo Müller (outro ex-aluno do professor), cursa o 2o ano da pós-graduação na Santa Casa. E seus dois irmãos, Pedro, de 21 anos, e Rafael, de 19, nascidos do casamento de Gisela com Raul Chamma, também estudam medicina. “Assumir os negócios é o caminho natural, mas o meu avô diz que, antes de tudo, tenho de focar os estudos”, reconhece Antonio Paulo.
Em sua longa carreira como um dos mais prestigiados cirurgiões plásticos do mundo, Ivo Pitanguy foi homenageado com banquetes no Oriente Médio, saudado em brindes pelo duque de Windsor e divertiu-se em noitadas em Paris com o ator Alain Delon. Seu bisturi preciso retocou o rosto de atrizes como as italianas Sophia Loren e Gina Lollobrigida, as brasileiras Sônia Braga, Vera Fischer e Susana Vieira e a princesa Stéphanie de Mônaco. Mas, se a clínica de Botafogo era um desfile de celebridades, a 38ª Enfermaria da Santa Casa foi o local escolhido para atender pacientes sem posses e formar especialistas. “Além de cumprir um trabalho social, até hoje essa é a melhor escola de cirurgiões plásticos do mundo”, defende Francesco Mazzarone, presidente do Instituto Pitanguy, o braço que funciona na Santa Casa. Afetada tanto pela ausência do criador quanto pela severa crise que atinge o hospital filantrópico em si, a 38ª Enfermaria enfrenta ainda o drama de não ter meios para se manter no futuro. Distante dos problemas práticos da instituição, Pitanguy escolheu justamente a pós-graduação para ensaiar sua volta ao trabalho e fazer aquilo de que mais gosta: atender pacientes e ensinar, como aconteceu na semana retrasada. “Isso me rejuvenesce. Na minha cabeça, ainda sou um jovem de 25 anos.” Uma satisfação para o mestre e um enorme privilégio para quem o assiste.