Os desafios do Rio para ser o centro do mundo durante a Olimpíada
A cidade comemora seus 451 anos em meio aos preparativos finais para receber os Jogos Olímpicos, um desafio colossal para os cariocas
O episódio não poderia ter sido mais inconveniente. Com o Maracanã abarrotado para a final da Copa de 2014, entre Alemanha e Argentina, um convidado da tribuna de honra já lotada chega ao estádio acompanhado de um séquito de cinquenta pessoas. O problema é que o poderoso em questão era nada menos do que o presidente russo Vladimir Putin, o anfitrião da próxima Copa, em 2018. Esperado no local com no máximo cinco ou seis acompanhantes, ele surgiu cercado de ministros, assessores e do famoso homem da mala, que, reza a lenda, carrega em uma valise um dispositivo que permite ao mandachuva da Rússia disparar seus mísseis nucleares de qualquer lugar do planeta. Obviamente, não havia a menor possibilidade de acomodar a todos. Depois de extensas negociações em russo, inglês e português, chegou-se a um acordo que permitiu a Putin e outras doze pessoas, entre elas o homem da mala, se instalar no local. Os demais tiveram de voltar para o hotel. Para evitar constrangimentos desse tipo nos Jogos Olímpicos, uma equipe de 207 funcionários trabalha freneticamente checando cada detalhe que envolva as autoridades que virão para o maior evento esportivo do planeta. Componentes da área de Relações Internacionais e Operações de Protocolo, eles são responsáveis pela recepção e logística da chamada “família olímpica”, um batalhão de 10 000 integrantes, entre membros do Comitê Olímpico Internacional (COI), presidentes de federações esportivas, representantes de grandes empresas e chefes de Estado — cerca de 100 deles são esperados na ocasião. Entre 5 e 21 de agosto, a cidade viverá uma situação-limite, em que nada pode dar errado, sob o risco de comprometer severamente não apenas a reputação do Rio e dos cariocas, mas também a de todo o país. “É um evento de uma magnitude ímpar, que envolve muitas culturas e particularidades. Estamos trabalhando para que nenhum detalhe nos escape”, diz Lucia Amaral Peixoto, a responsável pela área no Comitê Organizador.
O Rio comemora seus 451 anos, na próxima terça-feira, bastante atarefado. Temos pela frente a missão de organizar e arrumar a casa para a maior festa da história da cidade, em que todas as operações e números envolvidos são superlativos. No flanco mais exposto e sensível dessa complexa engrenagem fica a equipe comandada por Lucia, que contará ainda com o apoio de 3 000 voluntários. Numa ação conjunta com o Ministério das Relações Exteriores, a prefeitura, órgãos de segurança, de trânsito, aeroportos e hotéis, essa força-tarefa vai monitorar todos os deslocamentos das autoridades que vierem à cidade. O momento de maior apreensão é, compreensivelmente, a cerimônia de abertura, quando toda a tropa de vips terá de ir ao Maracanã praticamente ao mesmo tempo. O desafio é impedir que haja contratempos como o vivido pela presidente Dilma Rousseff, que ficou presa durante uma hora e meia no trânsito ao chegar a Londres para a última Olimpíada. Isso sem contar que tais momentos estão sempre sujeitos a gafes de repercussão planetária, mesmo em países tarimbados com esse tipo de evento. Em 2012, os ingleses passaram vergonha ao trocar a bandeira da Coreia do Norte pela da arqui-inimiga e vizinha Coreia do Sul, em uma partida de futebol. Para evitar constrangimento parecido, a equipe de protocolo dos Jogos 2016 terá um voluntário em cada local de hasteamento para conferir se está tudo correto. Tamanho preciosismo se justifica. O planeta inteiro estará olhando para cá. Só a cerimônia de abertura será vista por 5 bilhões de espectadores. “Vamos ter uma promoção espetacular do país e do Rio, que equivale ao trabalho de cinquenta anos dos órgãos de turismo”, avalia Alfredo Lopes, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis do Estado do Rio (Abih-RJ).
Estima-se que entre o início e o fim dos Jogos deverão circular pelo Galeão 1,5 milhão de pessoas, o maior fluxo de passageiros já registrado na história do aeroporto. Quem tem passagem marcada, estadia acertada e assento reservado com certeza acompanha com certa apreensão o noticiário a respeito da cidade. A eclosão da infecção pelo vírus zika disseminada pelo Aedes aegypti, a crise econômica do país e a ameaça da violência urbana — materializada recentemente pelo assassinato bestial de uma turista argentina em Copacabana — lançam uma sombra incômoda sobre a cidade-sede. Da mesma forma, a situação crítica das finanças do estado e o risco de algumas obras estratégicas, como a Linha 4 do metrô, não ficarem prontas a tempo turvam ainda mais esse cenário. As autoridades são pródigas em argumentos de que tudo se resolverá até agosto e de que prepararemos uma festa magnífica. É bom que seja assim, porque já é certo que teremos uma profusão de visitas ilustres, como os presidentes da Alemanha, Joachim Gauch, da França, François Hollande, e talvez dos Estados Unidos, Barack Obama, além de cabeças coroadas da Europa e do Oriente Médio. Além desse contingente, espera-se também a visita de pelo menos 12 000 presidentes e empresários de grandes corporações globais, para os quais a agência de fomento municipal Rio Negócios prepara uma extensa agenda de encontros e conferências. “Nunca recebemos tantos executivos de uma só vez. Será um momento único, principalmente no cenário atual de crise no país”, afirma Marcelo Haddad, diretor da agência.
Desde o anúncio do Rio como sede da primeira Olimpíada na América do Sul, em 2009, a cidade vive uma fase de transformações. Obras de infraestrutura somam-se a uma enxurrada de investimentos do setor privado. O Aeroporto Internacional, alvo de constantes reclamações pela decrepitude de suas instalações, passa por uma revitalização, orçada em 2 bilhões de reais. Até a Olimpíada, os terminais serão reformados e ampliados, 26 novas pontes de embarque entrarão em operação e 63 posições de check-in serão adicionadas às atuais 111. O setor hoteleiro também se expandiu. Até o fim de março, o Rio terá 62 000 unidades hoteleiras, o dobro da quantidade de seis anos atrás. As novas instalações, a maioria localizada na Barra da Tijuca, consumiram investimento de 7 bilhões de reais. Para fazer frente à concorrência, até mesmo baluartes da hotelaria carioca se mexeram. O Copacabana Palace, por exemplo, viverá uma situação inusitada. Com a maior parte de sua estrutura reservada para o Comitê Organizador, já está com suas reservas esgotadas. Ainda assim, o giro será intenso. Em um único dia, seus funcionários terão apenas duas horas para preparar 227 dos 239 apartamentos, que trocarão seus hóspedes simultaneamente. “Estamos treinando um batalhão de noventa pessoas para dar conta da missão”, diz a diretora-geral do hotel, Andrea Natal.
Ocupar tamanho destaque no cenário global resulta em imensas responsabilidades. Garantir a segurança é a principal delas. Na semana passada, o Comitê Olímpico da Austrália, numa medida radical, proibiu sua delegação de pisar nas favelas cariocas. Ao contrário do que ocorreu em Londres, onde todos puderam circular sem restrição, aqui os australianos terão um manual a seguir: as mulheres não devem andar sozinhas, e todos são orientados a ter no bolso 10 dólares para o caso de um eventual roubo. Há recomendações também para que as atletas adiem os planos de gravidez por causa do risco de ser contaminadas pelo vírus zika. O governo francês, em alerta desde os atentados que mataram 130 pessoas em Paris, em novembro, se dispôs a ajudar na segurança do evento. Algumas parcerias nessa área, como a que foi feita com o governo americano, já estão em andamento. “Estamos trabalhando juntos há mais de cinco anos em vários setores, que vão dos procedimentos de triagem no aeroporto ao gerenciamento de entrada e saída em estádios, como forma de prevenir incidentes graves dentro e no entorno dos eventos esportivos”, explica o cônsul-geral americano no Rio, James Story.
Durante os dezesseis dias em que o Rio sediará os Jogos, serão transmitidas daqui nada menos do que 7 000 horas de programação para redes de TV de mais de 150 países. Um exército de 25 000 jornalistas fará a cobertura do evento, que atrairá cerca de 350 000 turistas à cidade. Com isso, o Rio se tornará uma vitrine colossal. A Empresa Olímpica Municipal (EOM) contabiliza 88 interessados, entre consulados, comitês estrangeiros e empresas patrocinadoras, em montar bases temáticas na cidade para aproveitar a exposição que se tem nos Jogos. Desse total, 45 espaços já estão confirmados (veja mapa na pág. 29). Além de divulgar a cultura do país, esses espaços contarão com telões e uma agenda de eventos. O fenômeno que surgiu nos Jogos de Barcelona, com a badalada Holland House, teve onze unidades em Pequim, sessenta em Londres e deve bater seu recorde aqui. “É uma chance única de mostrar um pouco do nosso país e celebrar a amizade com o Rio e o Brasil”, resume Brice Roquefeuil, cônsul‑geral da França, que montará uma casa na Sociedade Hípica Brasileira, com capacidade para 3 000 pessoas por dia. Espaços instalados em locais públicos, como o da Alemanha, que ficará na Praia do Leblon, darão uma contrapartida ao município — no caso, a reforma da quadra esportiva de uma escola municipal. “Vamos ter uma base na Barra, fechada para a delegação, enquanto a do Leblon será um ponto de encontro aberto ao público”, diz o cônsul alemão, Harald Klein. Com uma vasta tradição de receber grandes eventos, que remonta à realização da Exposição Universal de 1922 e passa por conferências internacionais das Nações Unidas como a Eco-92 e a Rio+20, o Rio sabe acolher e encantar seus visitantes. O desafio que os cariocas têm pela frente é imenso. Mas a recompensa, se tudo der certo, será proporcional.