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Quarentena: Maria Ribeiro escreve crônica sobre isolamento social

"Por incrível que pareça, nunca tivemos tanta possibilidade de estar perto", reflete a atriz e diretora

Por Maria Ribeiro
Atualizado em 3 abr 2020, 16h26 - Publicado em 3 abr 2020, 12h00
prédio janelas
Maria Ribeiro sobre a quarentena: 'existe a tristeza pós-corona' (Caitlin Oriel/Unsplash/Reprodução)
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Quando abrir esta revista, o que pode acontecer em qualquer dia deste abril apocalíptico — ou mesmo depois —, você poderá estar triste. Quando digo triste — é importante lembrar —, eu naturalmente quero dizer o “novo triste”, o triste pós-corona, o triste 2020, o que não tem absolutamente nada a ver com o “triste de antigamente”, digamos assim. Antes da pandemia da Covid-19,as palavras significavam o que elas significavam, Aurélio feelings. Agora, não. Agora, os dicionários, assim como cada um de nós, têm dentro de si outra camada, outro conteúdo, outra densidade, e todos nós, sem exceção, seremos obrigados a nos realfabetizar.

Realfabetizado, portanto, você poderá estar… triste. Ou não, quando abrir esta revista,você poderá estar feliz. Feliz, não, feliz é muito. Você poderá estar… sereno, em paz, sentindo-se forte, capaz de “dar conta” das horas infinitas e da falta de perspectiva. “Dar conta”passa a ser, desde que a normalidade foi cancelada, o novo “ser feliz”. Você poderá, portanto, ao abrir esta revista, estar “dando conta”. Ou não, você poderá estar ansioso, deprimido, dormindo mal e, principalmente, com medo do futuro — ou pior, da ausência do futuro. Eu, a exemplo daqueles com quem divido a vida em ligações e mensagens diárias, tenho alternado “dias sim” e “dias não”, como diz meu amigo João.

Às vezes, acordo disposta e produtiva, e, em outras, dispersa e errante. Nesses dias — mais frequentes, tenho de confessar — produzo 764 textos de aproximadamente três linhas, me arrisco em arrumações que deixarão todos os itens da minha residência ainda mais difíceis de ser encontrados, vejo uma série por no máximo sete minutos e acabo indo dormir sem ter sequer lavado a louça do jantar, me rendendo ali pelas 6 horas da tarde ao comportamento bovino e passivo do noticiário e das redes sociais. Quando abrir esta revista, você poderá estar chorando. Ou não, você poderá estar ouvindo o disco do Caetano com os filhos — para mim, um verdadeiro ansiolítico — ou confiante, ou mesmo mergulhado em pessimismo. Eu, aqui da minha quarentena privilegiada de São Conrado, não tenho como conhecer seu estado de espírito, como também não conheço seu estado civil e muito menos seu estado de saúde. No entanto, há uma coisa a seu respeito que eu sei, e é sobre isso que me arrisco aqui: você está em casa. Em casa. Seus amigos, se não forem médicos ou frentistas ou enfermeiros ou farmacêuticos ou entregadores, também estão em casa, assim como seu maior desafeto ou o seu primeiro amor.

Seu irmão, seu patrão, seu empregado, sua mãe, seus primos, sua analista, sua manicure, seu cantor favorito, todos, a não ser que façam parte do front hospital/supermercados/farmácia, estão, ou deveriam estar, em casa — e agora me aproximo de algum encaixe. A casa, a sua casa. A casa que você chama de sua, muito provavelmente é um apartamento. Um apartamento, como o próprio nome já diz — e o termo vem do italiano —, significa “deixar de lado, apartar, separar”. É a partir dele, do seu apartamento, que você sai, assim como é para ele que você volta. Você volta — quando pode sair, naturalmente — de outros lugares que não o que você está agora, lendo esta revista. Que é a sua casa. Estamos em casa, leitor. Cada um na sua. Nunca estivemos tão longe uns dos outros, tão apartados, tão separados, e, por incrível que pareça, nunca tivemos tanta possibilidade de estar perto.

O tempo mudou de tempo, e o novo tempo é de não deixar nada para amanhã. A Covid-19 é cruel e democrática, e vai levar muitos de nós. Pedir perdão, perdoar, ter coragem de amar de verdade: mais do que limpar armários, maratonar séries e ler Proust, é chegada a hora de retornar mensagens e fazer declarações sinceras, mesmo que sejam duras. A vida, mais do que nunca, perdeu a garantia, e o único sentido — o único, leitor — é ser tão grande quanto se pode ser. Você está em casa, mas as suas palavras ainda podem ir a qualquer lugar.

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