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William Reis

Por William Reis, coordenador-executivo do AfroReggae Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
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Da pequena África à Wakanda In Madureira

Cerca de 1 milhão de africanos chegaram na Pequena África, zona portuária do Rio, que inspira o historiador Jonathan Raymundo com o projeto Wakanda

Por William Reis Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
6 mar 2020, 12h18
Jonathan Raymundo e William Reis
O historiador Jonathan Raymundo esteve com William Reis no (AfroReggae/Veja Rio)
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Em 2009, na zona portuária do Rio, a prefeitura inicia o projeto de revitalização do Porto Maravilha e em 2011 o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) revela as diversas camadas do Cais do Valongo, construído em 1811 e que até 1831 recebeu cerca de 1 milhão de africanos que chegaram à nossa cidade. Enterrado pela prefeitura do Rio a fim de apagar da memória carioca o comércio de escravos e criar um novo porto de chegada para princesa Italiana Tereza Cristina de Bourbon, esposa de Dom Pedro II, o Cais do Valongo muda de nome em 1843 e passa a se chamar Cais da Imperatriz. Sua redescoberta em 2011 faz ressurgir toda a história da Pequena África através de muitos que lutam hoje para que essa história não seja mais uma vez apagada ou destruída. Um exemplo é o historiador Jonathan Raymundo, 31 anos, morador de Realengo e idealizador do projeto Wakanda In Madureira, um projeto voltado para cultura negra em Madureira, um dos bairros mais negros da nossa cidade, onde a cultura ferve e a resistência passa de geração a geração.

Jonathan Raymundo conta que sentia uma certa agonia por ter muitos amigos virtuais que discutiam a questão racial no Rio sem conseguir se encontrar pessoalmente. Decidiu então fazer com que essas pessoas se encontrassem. Conversou com sua amiga até então virtual Dandara Barbosa e tiveram uma ideia: organizar um piquenique em Madureira, lugar onde a cultura negra está muito presente através do rap, basquete, blocos afro, jongo da Serrinha, charme, escolas de samba tradicionais e tantas outras vertentes.

O primeiro piquenique reúne cerca de quarenta pessoas. O evento cresce e transforma-se em um mini festival realizado no espaço Fernando Torres Parque Madureira, com samba, teatro, dança e empreendedores que se dedicam à temática negra na cidade do Rio. A partir daí, ganha força e um nome impactante: WAKANDA IN MADUREIRA e hoje movimenta cerca de 40 mil reais por evento.

‘O Wakanda se tornou um espaço de encontro da galera negra do Rio e fora do Rio. Hoje a gente recebe a galera gringa, africana, de São Paulo, Bahia e de outros lugares que estão discutindo racismo na Internet. Nossa preocupação também são as crianças e por isso criamos oficinas para que elas possam participar e consequentemente se conscientizar de sua história e herança,’’ diz o idealizador do projeto.

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(AfroReggae/Veja Rio)

Como no filme Pantera Negra, onde Wakanda é um lugar fechado para defender-se de invasões de inimigos e proteger o poderoso metal vibranium, o evento em Madureira demorou algumas edições para ser aberto ao público. Para Jonanthan, quanto mais visibilidade tem o evento, mais forte e mais sustentável ele se torna. “Antes o evento era só para convidados e amigos dos convidados, mas foi crescendo e a gente viu que deveria criar uma página e um evento aberto para o maior número de pessoas possível.’’

Segundo Jonathan, enquanto a crise na cultura do Rio afeta os grandes espaços tradicionais da elite, o outro lado da cidade, acostumado a lidar com a ‘’crise’’, continua alimentando a cultura carioca.  “Cada vez mais, o outro lado da cidade tem sustentado a cultura carioca porque a galera que frequenta os teatros, os grandes saraus e os grandes concertos está quebrada. Enquanto isso, existe uma outra cidade que sempre viveu sem grana de patrocínio, sem investimento público, e que continua fazendo a produção cultural que sempre fez.’’ Em paralelo ao projeto Wakanda, que acontece uma vez ao mês, Jonathan decidiu dar mais um passo e criou um passeio cultural que visa apresentar as pessoas a um local famoso, mas com pouca visibilidade: a zona portuária onde fica a Pequena África.

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‘’Wakanda é o primeiro impacto para quem está meio perdido sobre a questão racial. Você chega lá e, pela primeira vez, vê pessoas negras com autoestima, celebrando a própria melanina, a própria cultura. Isso causa um impacto visual ao qual não dá para passar ileso. Wakanda impacta a consciência das pessoas e faz refletir sobre o que fazer depois desse impacto,’’ afirma ele, que após esse primeiro momento decide se mudar de Madureira para Pequena África, na zona portuária do Rio. Surge então o chamado braço educacional de Wakanda, que são passeios por locais onde pessoas negras foram importantes na construção da cultura carioca conhecida no mundo inteiro. Jonathan cita também um outro projeto chamado Papo de GRIOT.

A palavra GRIOT denomina o indivíduo na África que transmite e preserva as histórias de seu povo, que dissemina o conhecimento, ou seja, os GRIOTS são os verdadeiros guardiões milenares. “Eu via um grande distanciamento entre as pessoas mais velhas do movimento negro, das décadas de 60, 70 e 80, que construíram a identidade desse movimento, e as pessoas mais novas que atuam na Internet e que também estão procurando seu lugar ao sol. Esse papo é uma aproximação dessas duas gerações.’’

Para Jonathan Raymundo, a Pequena África não se limita apenas à zona portuária do Rio, mas se estende até o Estácio, bairro onde nascem as escolas de samba. “Tudo isso é a Pequena África e nessa visita a gente conta como os negros sobreviveram e como era a relação de trabalho e solidariedade entre essas pessoas. Durante o passeio, você conhece a verdadeira história da nossa cidade.’’ Segundo ele, os passeios são um estímulo a conhecer a nossa história construída por pessoas negras que ainda são invisíveis.

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O resgate da cultura negra da nossa cidade é uma das bandeiras levantadas por Jonathan, ele mesmo um dos herdeiros dessas histórias, que se apropriou do fato de elas pertencerem aos seus antepassados. Mas  ele não é o único a resistir nesses espaços. O MUSEU PRETOS NOVOS, localizado na Gamboa e criado em 2005, também faz parte desse passeio turístico. O local foi revelado em 1996 quando Merced Guimarães e seu marido faziam uma obra em sua casa e descobriram que debaixo dela havia um grande cemitério de pretos, chamados de novos por serem recém-chegados da África, que não sobreviveram às humilhações e aos maus-tratos sofridos na travessia transatlântica.

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(Site museu pretos novos/Veja Rio)

‘’O museu não recebe ajuda governamental desde 2016. Nossa fonte financeira para mantê-lo era uma pós-graduação em parceria com uma universidade,’’ diz Merced Guimarães, que espera por tempos melhores. O MUSEU PRETO NOVOS foi um dos primeiros locais que eu frequentei quando resolvi conhecer a história da Pequena África, onde fui muito bem recebido por minha amiga Penha Santos, que lutou incansavelmente pela continuidade do acervo que o Brasil insiste em tentar apagar.

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Jonathan conta ainda que havia na Pequena África grandes casas coletivas lideradas por mulheres, que em sua maioria eram mães de santo. ‘’Elas eram responsáveis por receber esses novos cariocas recém-chegados da Bahia, libertos e fugidos. Eles pagavam para ficar nessas casas e essas mulheres lhes apresentavam a cidade e lhes conseguiam emprego. Eram as principais responsáveis por arrecadar dinheiro, o que hoje chamamos de vaquinha, para libertar mais escravos, pagar os enterros. Havia toda uma rede de solidariedade para essas pessoas recém-chegadas ao Rio.’’

Segundo ele, as alas das baianas do carnaval são uma homenagem a essas líderes religiosas, que vieram da Bahia e ocuparam o espaço que hoje chamamos de Pequena África. ‘’A Pequena África produz a vida cultural que temos em nossa cidade. Quando se pensa no carioca, no samba, nas escolas de samba, nós somos os grandes mestres do samba e tudo isso se dá nesse espaço de aglomeração de escravos, libertos e fugidos, baianos, cariocas, terreiros.’’

Esses passeios turísticos foram idealizados por Jonathan Raymundo e Luana Ferreira, formada em história pela UERJ, moradora da zona oeste do Rio e guia do passeio cultural, que acontece nos meses em que não há Wakanda in Madureira. O evento, criado na página do Facebook, é divulgado nas redes sociais. Uma contribuição voluntária dos participantes ajuda a custear tanto o Wakanda in Madureira quanto o passeio cultural.

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Enquanto o Brasil insiste em esconder sua história sobre a escravidão e suas consequências na sociedade nos dias de hoje, países como a Alemanha se empenham em revelar a história do Holocausto para que ela nunca mais se repita e não se minimize o sofrimento dos judeus.

Wakanda in Madureira e a Pequena África remam contra a maré e resistem ‘’O Brasil tem um problema que precisa resolver para que possa se entender e avançar. Precisamos encarar nosso próprio passado de frente para poder superá-lo. Fingimos que as coisas não existem, que o racismo não existe, que não somos violentos numa cidade extremamente violenta, que vivemos em uma democracia racial. Vivemos a história da escravidão negando-a e nos recusando a enxergá-la. O Museu Pretos Novos, local que mais recebeu pessoas escravizadas na História Moderna ou talvez em toda História da humanidade, só foi descoberto por acaso,’’ completa o historiador bastante emocionado.

Enquanto a Alemanha, que citei como exemplo, não esconde o Holocausto, nós no Rio de Janeiro insistimos em apagar nosso passado escravocrata e criamos o Porto Maravilha e o Museu do Amanhã no território onde existe o único cais fora da África, que recebeu cerca de um milhão de escravizados. O que fazemos com o nosso passado? Nós o esquecemos e escondemos porque ainda insistem em dizer que vivemos em uma democracia racial em que a cada 23 minutos morre um jovem negro, em que esses jovens são na sua grande maioria oriundos de periferias, em que a população carcerária é negra, em que os maiores índices de uma péssima educação ocorrem entre pessoas negras, em que homens negros são a maior parte da população de rua. Mesmo com todas as tentativas de apagamento desse passado, Jonathans, Dandaras, Luanas, Merceds e tantos outros orgulham-se dessas histórias e a cultura negra da cidade mantém-se viva, aquecida, preservada e honrada por esses verdadeiros cariocas.

 

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