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William Reis

Por William Reis, coordenador-executivo do AfroReggae Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
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Kaza 123: a resistência que vai muito além do angu

Espaço em Vila Isabel traz a resistência do angu na culinária, livraria e loja de moda africana. A cultura negra continua viva na Zona Norte do Rio

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6 nov 2020, 18h12
Kaza123 a resistência negra da culinária aos atos políticos de pessoas negras (Julio de Sá/Reprodução)
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O bairro de Vila Isabel já nasceu com o espírito abolicionista. A famosa Rua 28 de Setembro, principal eixo do bairro, foi assim denominada pelo então abolicionista Barão de Drummond, em homenagem ao dia em que foi proclamada a Lei do Ventre Livre.

O bairro também é destaque na cultura do samba. Noel Rosa, um dos maiores nomes da música brasileira, nasceu lá. Foi Vila Isabel que emprestou seu nome a Martinho José Ferreira, conhecido como Martinho da Vila, um dos maiores sambistas do Brasil. A Vila sempre foi frequentada por personagens negros importantes, como Neguinho da Beija Flor, Jamelão e o próprio Martinho.

Vila Isabel tem muitos encantos, entre eles a boemia, a atividade cultural e a gastronomia. O bairro mantém suas origens e resiste como resistem os negros no Brasil. Dessa resistência e da cultura negra, nasceu o Kaza 123, um lugar que junta a gastronomia do angu, a moda africana e até uma biblioteca com livros com a temática racial. O Kaza 123 é todo decorado com figuras negras como Malcolm X, Martin Luther King, Carolina de Jesus, Angela Davis e a vereadora Marielle Franco, uma das figuras mais fortes do movimento negro na atualidade, que foi executada em 2018.

Culinaria
O Kaza 123 tem como objetivo contar a história do Angu na vida dos negros no Brasil (Lucas Ribeiro/Reprodução)

O espaço Kaza 123 é liderado por Rodrigo França, Maria Julia e Lica Oliveira. Estive lá na última sexta-feira para conhecer melhor o lugar, que já sediou um encontro exclusivo de homens negros que lutam contra o racismo e se destacam no cenário brasileiro. Participaram desse encontro Jonathan Azevedo e Raphael Logam, o advogado Djeff Amadeus, os jornalistas Marcos Luca Valentim e Diego Moraes, o produtor cultural Jonathan Raymundo, políticos como Jota Marques, candidato a vereador, e tantos outros homens de sucesso, que contrariaram a estatística de que a cada 23 minutos morre um jovem negro no Brasil.

Maria Júlia Ferreira, designer gráfica e chef de cozinha, uma das sócias do Kaza 123, conta que o espaço teve origem em uma tradição familiar de reunir pessoas tendo a gastronomia como um forte elemento de conexão. “Dizem que festa de preto tem que ter comida. A comida tem uma simbologia muito forte e minha família sempre seguiu a tradição de reunir pessoas,’’ diz a responsável pela culinária e pelo design gráfico do Kaza 123.

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Maria Julia conta que foi o sócio Rodrigo França, dramaturgo, filósofo e cientista social, que propôs a ela montar um negócio com a comida ancestral, o angu. Foi assim que nasceu o prato principal da casa, o Angu Gourmet. Eles começaram de forma bem artesanal, participando de feiras de culinária. “Rodrigo me disse que compraria um trailer. Eu achei a ideia maluca, mas ele apareceu com o tal do trailer, que comprou parcelado em não sei quantas vezes. Criamos o food truck do angu, que até então ninguém tinha visto.”

Maria Julia
Maria Julia sócia, uma das idealizadoras do projeto e chef do Kaza 123 (Julio Sá/Reprodução)

A história dos vendedores ambulantes de comida de rua começa com as quituteiras no pós-abolição. Justamente nesse período surgiram as vendedoras de angu. Há inclusive um quadro de Debret que retrata mulheres negras vendendo o quitute. No período pós-escravidão, as mulheres negras assumiram o papel de principais responsáveis pela renda familiar. Elas ofereciam serviços de culinária. Angu vem da palavra africana àgun, que designava uma papa de inhame. O quitute passou por algumas mudanças na culinária brasileira. Durante muito tempo foi considerado comida de senzala, e depois passou a ser consumido por muitas famílias que habitavam as favelas.

Meus tios por parte de pai cresceram comendo angu com bofe, uma mistura barata e muito comum na mesa das famílias que não tinham acesso a outros alimentos por causa de sua condição financeira.

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Gravura Jean Baptiste Debret – Vendedoras de Angu (Gravura Debret/Reprodução)

Depois de algum tempo no trailer, o negócio do angu gourmet ganhou um espaço físico, que fica rua Visconde de Abaeté, 123. Lá ele é servido com base no conceito criado pelos negros para esse prato: fraternidade, união e acolhimento. No bar existem outras expressões culturais, como uma biblioteca onde se encontram biografias de grandes lideranças negras e obras sobre história dos negros e uma loja de moda africana com roupas para o público masculino e feminino.

Como acontece com muitos empreendedores negros, a união de pessoas com um mesmo objetivo tornou esse espaço possível. Todas as soluções para decoração do espaço surgiram do trabalho coletivo de pessoas negras. Muitos dos utensílios usados são peças artesanais simples, mas a decoração do lugar torna tudo muito mais charmoso e mais marcado pela cultura negra. O Kaza 123 também tem o compromisso de empregar pessoas negras, que ainda encontram dificuldades no mercado de trabalho por causa do racismo. O estabelecimento não deixa nada a desejar comparado aos grandes bares e restaurantes do Rio de Janeiro.

No embalo negro de Vila Isabel e do Kaza 123, Rodrigo França, um dos sócios, que se define como alguém que constrói pontes, é um dos principais personagens negros da cidade do Rio de Janeiro na luta contra o racismo. Ao ser perguntado sobre seu papel no Kaza 123, Rodrigo responde: ‘’Faço as articulações culturais. Ao mesmo tempo, sou responsável pelas finanças e prestação de contas. Não queremos ser apenas um restaurante; queremos que esse lugar respire cultura’’. Ele também atua nas áreas de ciências sociais e audiovisual.

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Rodrigo França e William Reis no Kaza123 (William Reis/Reprodução)

Para Rodrigo, falar de negritude é sempre um ato político. Fiz uma provocação e perguntei a ele se o Kaza 123 também é um ato político: ‘’Primeiro a gente avança e passa de empreendedor a empresário. Muito me orgulho de ter uma empresa 100% legalizada e correta, inserida no sistema. Em todo o histórico de resistência da luta preta, nós sempre tivemos que permanecer na ilegalidade para comprar nossa liberdade e nosso sustento. Não sou contra quem é ilegal porque sei o quanto o processo é burocrático, caro e excludente. Mas, ao mesmo tempo, ter uma empresa 100% legalizada é um ato político, ter uma empresa que contrata diretamente treze pessoas e que tem a projeção de gerar emprego para mais vinte pessoas é um ato político, sob o ponto de vista das relações internas. Já nas relações externas, também é um ato político ter um espaço onde existem referências negras em cada metro quadrado e não se posicionar como um espaço temático típico, mas como uma casa de resistência e afeto, onde as pessoas se veem bonitas, trocam experiências positivas. Quando você entra na sua casa, você quer deixar tudo de ruim do lado de fora e aqui não é diferente’’

Rodrigo França diz que, para pessoas negras, o espaço significa voltar para casa, voltar para os seus, para nossas ancestralidades e para nossa essência em uma sociedade que nos apaga e nos embranquece. Rodrigo diz ainda que está rebatizando Vila Isabel, não em homenagem à princesa Isabel, que foi apontada como uma suposta redentora dos negros e hoje se sabe que, na verdade, a história não foi bem essa, mas em homenagem a atriz Isabel Fillardis.

O Kaza 123 é um espaço que surge como uma das bandeiras na luta contra o racismo. Conta a verdadeira história do angu, que por muito tempo foi o nosso principal alimento, com o qual as mulheres negras sustentavam suas casas quando os homens negros foram marginalizados e a mão-de-obra antes escrava foi trocada pela mão-de-obra remunerada dos descendentes de europeus.  Cria um espaço de moda africana, em um país onde a moda continua eurocêntrica e não existe padrão de beleza negro. Mantém uma livraria negra com obras que contam a verdadeira história de um povo que foi escravizado por mais de três séculos, mas nunca aceitou a escravidão nem foi omisso como sempre nos foi contado. Ao contrário, foi o povo que mais se reinventou diante do maior crime cometido pela humanidade, a escravidão.

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Raphael Logam, Jonanthan Azevedo, Jonathan Raymundo e William Reis no encontro promovido por homens negros no Kaza123 (William Reis/Reprodução)

O espaço Kaza 123 reúne homens negros que escaparam da estatística de que a cada 23 minutos morre um jovem negro no Brasil. É um lugar do encontro, da troca, de entender que devemos nos encontrar nas dores e nos sabores. É um lugar de entender que não avançamos enquanto houver racismo. Vida longa ao Kaza 123!

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