Jacarezinho: a história da favela mais negra do Rio de Janeiro
Fazenda da família Vargas, evolução industrial no Rio, a rota de negros que fugiam da escravidão e a resistência de tia Dorinha
Segundo dados da Prefeitura do Rio, estima-se que a favela do Jacarezinho tenha 37 mil moradores. Além de ser considerada uma das favelas mais violentas da nossa cidade, também é tida como a favela mais negra do Rio de Janeiro. Quem nos conta a história do Jacarezinho é um de seus líderes locais chamado Rumba Gabriel, filho de mãe capixaba e pai mineiro, que vive na favela há 65 anos.
A área onde fica hoje a favela do Jacarezinho pertenceu à família do ex-presidente Getúlio Vargas, que doou o espaço para que famílias locais o ocupassem. Segundo Rumba Gabriel, Jacarezinho localizava-se na comarca de Engenho Novo e pertencia ao conjunto de comarcas que incluía Engenho Novo, Engenho de Dentro e Engenho da Rainha.
Nesse mesmo local foi construída a Igreja Nossa Senhora da Conceição do Engenho Novo, que o padre Alexandre Língua transformou em um grande santuário de Nossa Senhora da Conceição. Durante as escavações para construção do santuário foram encontrados restos de ossos de pessoas que foram escravizadas. Nas grutas dessa região, que era conhecida como Preto Forro, escondiam-se os negros fugitivos das fazendas dos senhores de engenho localizadas na Serra do Matheus, na boca do Mato.
Rumba comenta que existe um samba que conta essa história: ‘’Lá na Serra do Matheus, na Boca do Mato, todo negro dono da sua liberdade, na maior felicidade, se dirigia para lá.’’ No local onde os restos de ossos foram encontrados, o padre construiu a Capela das Almas. ‘’Até hoje, se você quiser ir lá visitar, tem esses ossos para conhecer essa história. E podemos chamar o Jacarezinho de Quilombo, assim como também podemos chamar o Morro da Matriz, o Morro do Encontro, o Morro da Cachoeirinha, o Morro do Sampaio e Boca do Mato, pois tudo isso pertencia ao império português, que se instalou ali no que hoje é a Quinta da Boa Vista. Toda essa região era onde eles guardavam seus cavalos, onde eram as oficinas. E Jacarezinho nasce dessa história,’’ diz Rumba.
‘’Podemos afirmar que Jacarezinho é um quilombo urbano. Muitos acham que quilombos só são os que ficam no interior, mas se esquecem dos negros que vieram para o centro. O Rio de Janeiro recebeu mais de 1 milhão de negros para serem escravizados ali no Cais do Valongo, que foi abandonado como tudo o que é nosso é abandonado. Esses negros que chegavam ao Rio não iam para o interior. Eles iam para lugares como Jacarezinho, onde ocorreu a maior concentração de negros em favelas no Rio de Janeiro,’’ Rumba continua.
Na geografia da favela, ainda segundo Rumba Gabriel, por volta de 1920, nasceram as primeiras ocupações. Essas pessoas ocuparam a parte mais alta do morro, chamada de Azul. Ele explica: ‘’Essa característica dos negros de fazerem suas casas no alto dos morros era justamente pelo medo da polícia, que passou a desempenhar o papel dos Capitães do Mato, prendendo essas pessoas.’’
Na década de 30, no período industrial que chamamos de Estado Novo, Getúlio Vargas criou as leis trabalhistas e muitas indústrias instalaram-se no bairro do Jacaré por sua localização central e fácil acesso a outros bairros como Tijuca e Ilha do Governador. ‘’Assim nasceu o segundo parque industrial do Rio de Janeiro, que é o bairro do Jacaré, que só perdia para São Cristóvão’’, afirma Rumba.
Durante esse período, no qual o Rio era o segundo maior polo industrial do país, a mão-de-obra do Jacarezinho foi muito utilizada, estimulando o desenvolvimento local. Nesse momento em que os trabalhadores eram beneficiados pelas leis trabalhistas da época, os moradores do Jacarezinho tiveram mais direito à cidadania. Além de oportunidades de trabalho, também tiveram acesso a uma educação de melhor qualidade, o que contribuiu para que Jacarezinho avançasse mais do que outras favelas do Rio. Isso nos remete à discussão sobre a importância do desenvolvimento social e econômico nas favelas. A falta de investimento resulta em um aumento de problemas como violência, desigualdade no acesso à educação, saneamento básico e tantos outros indicadores sociais que acabam fazendo com que o carioca enxergue apenas o cenário negativo das favelas do Rio de Janeiro.
Rumba Gabriel conta uma outra história, cujo personagem principal também é um pároco. Carlos Nelson Delmonaco, mais conhecido como padre Nelson, construiu uma capela em um lugar chamado Cruzeiro. Lá as pessoas faziam suas orações, em especial às segundas-feiras, pois era o dia das almas. Esse mesmo padre também organizou mutirões e construiu a maior igreja católica do Rio de Janeiro dentro de uma favela, a igreja de Nossa Senhora Auxiliadora.
A cultura negra sempre esteve ligada ao Jacarezinho. ‘’A favela sempre foi muito negra até a chegada dos nordestinos brancos e a criação daquela história de democracia racial, que não existe nem na favela, como argumentava Gilberto Freyre na construção dessa falácia,’’ diz Rumba Gabriel.
A cultura manifestava-se fortemente através dos terreiros. Eram cerca de dez a quinze centros de Umbanda. Esses centros ajudaram a manter a tradição negra nesses quilombos urbanos e todos eram liderados por mulheres negras. ‘’Tínhamos o centro da tia Lurdes, da tia Madalena, da Dona Ziza e da tia Dorinha. Tia Dorinha morreu aos 104 anos em abril do ano passado. Foi a nossa maior resistência quando as igrejas neopentecostais entraram no Jacarezinho, conduzindo moradores da favela e dizendo que nossas religiões eram uma cultura do mal, do inferno e do diabo. Tia Dorinha resistiu a isso,’’ conta Rumba, ressaltando os constantes ataques que as religiões de matriz africana sofrem hoje no Rio.
Esses ataques e essas falsas histórias aumentaram a intolerância religiosa nas favelas do Rio. Muitas pessoas amedrontadas saíram das favelas. Outras acreditaram e acabaram aderindo a essas religiões. De uma forma ou de outra, isso contribuiu para que nosso povo perdesse parte do legado deixado por nossos ancestrais. Hoje existe apenas um centro de Umbanda no Jacarezinho e seus tambores batem timidamente, talvez com receio de alguma opressão. Tia Dorinha, aos cem anos, recebeu em uma festa diversos líderes religiosos. Ela também foi convidada a se converter, mas, até o fim de seus dias, recusou esses convites. Sua casa até hoje é um centro.
A cultura negra manteve-se também no samba com o bloco carnavalesco Não tem Mosquito, a escola de samba Unidos do Jacaré e a União do Morro Azul, fundada por Tia Andreza. Como não queria uma ‘’cidade partida’’, Tia Andreza organizou a união dessas escolas de samba e criou o Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Jacarezinho, por onde passaram vários sambistas como Gaspar, Cartola, Bezerra da Silva e Nelson Sargento. Por isso a escola de samba Mangueira foi madrinha da Acadêmicos do Jacarezinho. O famoso Monarco da Portela também tem sua história ligada à favela. ‘’Monarco da Portela é do Jacarezinho. E por que do Jacarezinho? Ele era apontador de bicho naquela época. Surgiu um problema e um amigo dele, que tinha uma casa no Jacarezinho, falou pra ele ir morar lá. Isso no final da década de 50,’’ conta Rumba Gabriel, que era amigo de Monarco.
Rumba Gabriel é um líder oriundo do Jacarezinho, onde vive há 65 anos. Ele lembra de algumas ações que implementou quando assumiu a associação de moradores. Seu legado inclui a construção do Centro Cultural do Jacarezinho, que tem como objetivo guardar a história da favela, e a Cooperativa Mista dos Trabalhadores do Jacarezinho, com dezoito oficinas de marcenaria, serralheria, estofamento e confecção, de cuja renda dependem mais de cem famílias. Quando veio a era da informática e as pessoas que trabalhavam nas indústrias perderam espaço, Rumba Gabriel conseguiu vários computadores e criou cursos de informática para capacitar os moradores. Os cursos qualificaram e deram certificados de informática a 568 pessoas. Rumba também trouxe a orquestra Tupi para dentro do Jacarezinho. Ele reconhece a importância de outras culturas musicais dentro da favela, por isso organizou uma apresentação no largo do Cruzeiro com a presença de padres, comandantes da polícia militar, policiais, delegados, jovens e moradores.
Ao ser perguntado sobre o ex-jogador Romário, que nasceu no Jacarezinho, mas saiu muito cedo de lá, Rumba conta que, depois que se tornou jogador profissional, Romário voltou algumas vezes para jogar futebol no Campo do Abóbora, que fica perto de onde o jogador morava. Mas na opinião de Rumba, Romário poderia ter ajudado mais a favela. ‘’A história do Romário aqui é interessante, mas não é muito boa. Quando ele se projetou, deveria ter deixado algum legado. Deveria mostrar que estava envolvido de alguma forma. Ele criou os Romarinhos, uma espécie de pequena Vila Olímpica, mas não fez nada aqui. Só quando começava a campanha eleitoral.’’
Rumba Gabriel, assim como muitos dos ativistas de favelas do Rio, é ameaçado quando denuncia os abusos policiais. No ano 2000, fez denúncias com a ajuda do deputado Freixo e da vereadora Marielle Franco e teve que sair do país. Com o apoio dos Panteras Negras, deixou a favela e foi para os Estados Unidos. Os Panteras Negras acharam interessante o projeto criado por Rumba, chamado Condomínio Favela, que colocava portões e câmeras nas favelas para monitorar as ações dos policiais. Diante do aviso ‘’Sorria policial, você está sendo filmado,’’ colocado próximo às câmeras, os abusos policiais diminuíram, mas eles tentaram prender e ameaçar Rumba, que teve que ir embora para os Estados Unidos.
Essa é a história do Jacarezinho, a favela mais negra da nossa cidade. Mesmo com as opressões à cultura negra e os abusos policiais, ela resiste como todas as favelas do Rio. A figura de Rumba Gabriel, que nos conta essa história, faz parte do legado de resistência de um povo que constantemente precisou se reinventar, por isso resiste e garante que as histórias de Rumba e Tia Dorinha continuem sendo contadas para outras gerações. Foi no Jacarezinho, na Rocinha e em Manguinhos que a última onda de tuberculose fez o maior número de vítimas, e pouco se falou sobre isso. São lugares abandonados pelo estado, onde a morte e a violência são naturalizadas pela sociedade, que só se importa quando essas desigualdades sociais transbordam e atingem seus privilégios. Viva Jacarezinho!