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Por Tulio Brandão, jornalista atento a cidades sustentáveis
Em busca da linha fina entre a transformação urbana e o patrimônio natural
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Meu bom Alah: desafios de um patrimônio raro entre Ipanema e Leblon

Um olhar sobre o presente, o passado e o futuro do Jardim de Alah, patrimônio urbano escolhido para ser revitalizado por uma parceria público-privada

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Atualizado em 22 ago 2023, 10h39 - Publicado em 3 out 2022, 11h41

O Jardim de Alah reúne um conjunto tão rico de histórias sobrepostas que bate uma tristeza cidadã vê-lo apenas como um esquecido ponto de ligação entre dois bairros da Zona Sul, entre a lagoa e o mar. Quase sempre vazia e em boa parte maltratada, essa faixa de paisagismo inspirada pelos desenhos do francês Alfred Agache está na mesa de gestores públicos da cidade para um projeto de revitalização a partir de uma manifestação de interesse da iniciativa privada.

A concessão, de 35 anos e com investimentos previstos entre 80 milhões de reais e 100 milhões de reais, foi modelada a partir das sugestões de uso daquele espaço feitas por dois grupos de empresas concorrentes. Num rápido resumo, a ideia é que a nova concessionária revitalize funções paisagísticas, sociais, esportivas e de lazer do Jardim de Alah, crie um estacionamento subterrâneo e, em contrapartida, ganhe o direito de explorar generosos 7 mil metros quadrados, o que representa cerca de 10% do total da área, para atividades privadas – a saber, cafés, restaurantes e demais atividades comerciais.

Ao primeiro olhar, parece bom o acordo. Para o administrador público, curaria as feridas de um belo patrimônio urbano sem sangrar os cofres. De outro, empresários teriam chance de investir na baixa, recuperar o espaço e lucrar com a alta daquele território. O jogo seria de ganha-ganha se essa história só tivesse esses lados.

Gestores, no entanto, tropeçaram numa pedra que aparece com frequência em parcerias público-privadas (PPP): a falta de diálogo com a sociedade na construção de uma solução para o território. Receosos com os impactos das atividades comerciais na região, moradores de Leblon e Ipanema protestaram, levaram o embate ao Ministério Público e, diante do impasse, o prefeito da cidade, Eduardo Paes, reagiu, garantindo que abriria o diálogo com a população antes de decidir por qualquer caminho.

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É totalmente possível – e recomendável em gestões modernas – conciliar interesses públicos e privados em PPPs para a recuperação de um território. O dilema é a modelagem – ou melhor, aplicar melhor o que significa o segundo “P” da sigla, o público, que deveria ser representado por todos os recortes da comunidade. Ali, por exemplo, seria formada por um grupo diverso que inclui, além de representantes dos bairros nobres da cidade, moradores da Cruzada São Sebastião, pescadores, comerciantes locais, entre outros. Sim, há um enorme desafio na conciliação desses interesses distintos, mas não há outro caminho.

Um bom começo para serenar tantos olhares distintos é tratar o território como sagrado. O protagonismo não está com a concessionária, ou com o gestor público, ou mesmo com a comunidade. O centro de tudo é o território, é no olhar atento e sensível ao espaço que se torna possível encontrar todas as respostas.

É preciso dar ao território a chance de oferecer as respostas necessárias e, com isso, promover o tal milagre da transformação da cidade. Se respeitarmos o que o lugar tem a nos dizer, há integração harmônica de distintos estratos sociais e usos do espaço.

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A história pode nos ajudar a revelar o que aquele espaço tem a dizer. Tudo começou com a construção do canal entre a Lagoa Rodrigo de Freitas e o mar, intervenção que completou neste 2022 exatos 100 anos. A data está no discreto texto esculpido em baixo relevo numa pedra nas escadas do jardim, com os seguintes nomes: “Presidente Epitácio Pessoa, Prefeito Carlos Sampaio, Engenheiro Saturnino de Brito.”

Inspirado por Brito, Sampaio conseguiu levar a obra adiante com o argumento da “tripla visão da higiene, do embelezamento e da economia”. Para convencer os mais resistentes, o prefeito chamou a Lagoa de “zona infecciosa das mais perigosas, principalmente pelos pântanos de águas doces, focos inesgotáveis de mosquitos”, habitada por “uma população ribeirinha que aí ia procurar residência gratuita, em terrenos abandonados, e que pagava com a saúde o que não podia pagar pecuniariamente”.

Ali estava o território, a gritar aos administradores públicos que qualquer intervenção deveria considerar a existência de distintos estratos sociais num só lugar. Mas, nesta silenciada disputa por espaços públicos, o patrimônio urbano foi sendo construído como se nele não existisse qualquer desigualdade.

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O Jardim de Alah propriamente dito ficou pronto em 1938, para confirmar a declarada inspiração europeia vigente à época. Inspirado nos desenhos franceses de Agache, o projeto ganhou o nome em homenagem a um filme homônimo da época, estrelado pela atriz Marlene Dietrich, que lotava os cinemas da cidade com cores vivas geradas pelo então raro cinema em Technicolor com capturas por três negativos.

Durante algumas décadas, o nosso Jardim de Alah – formado pelas praças Almirante Saldanha da Gama e Grécia – serviu aos propósitos de lazer de uma parte da população da cidade. Há registros de divertidos piqueniques e de serviços de românticas gôndolas que saíam do canal, em nossa tentativa de ser Europa.

Nos mesmos anos 1930, ganhava corpo, a uma quadra dali, uma realidade bem distinta, possivelmente um desdobramento daquela “população ribeirinha” mencionada no início do século por Sampaio: a Favela do Pinto, num terreno entre Leblon e Lagoa onde hoje está o condomínio Selva de Pedra.

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Nossa histórica dificuldade em reduzir desigualdades converteu-se, no meio do século passado, numa crescente campanha de remoção das favelas. Em 1955, a cidade ganhou um alento civilizatório: a partir de uma bela iniciativa de Dom Helder Câmara, o presidente da República Café Filho ergueu, na margem oeste do Jardim de Alah, a Cruzada São Sebastião, conjunto habitacional de inspiração modernista que recebeu parte dos moradores da Favela do Pinto.

Mas a remoção integral tornou-se politicamente inevitável no governo militar e, em 1969, virou agenda pública. Só que havia espaço para uma tragédia ainda maior: antes do desmonte final de todas as casas e barracos, a Favela do Pinto foi varrida do mapa por um incêndio, de causas não esclarecidas, o que forçou a relocação de todos os demais moradores para a Cruzada e para outros conjuntos habitacionais do Rio.

O tempo passou sem o diálogo do território resolvido. O Jardim de Alah, importante elemento de conexão entre bairros e entre a Lagoa e o mar, segue até hoje incapaz de promover o encontro mais importante do território: o das diferenças sociais da cidade.

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A conexão (mais uma) entre o público e o privado pode ser um belo ponto de partida. Desenhar o modelo mais adequado de PPP, que permita que o próprio território seja indutor de desenvolvimento econômico e redução de desigualdade – e não ao contrário, como sempre se esperou – é um desafio e tanto para Eduardo Paes.

O Jardim de Alah, a Cruzada, o Leblon, Ipanema e todo o Rio de Janeiro esperam ansiosamente por essa essencial conciliação das diferenças.

 

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