O mar tem sede de cidade
Ondulações de Sul-Sudoeste, como a que chegou à cidade esta semana, avançam sobre a cidade construída
A conversa da cidade com o mar, no Rio, escorre serena em boa parte do ano. Acontece todo dia, discretamente, ali na areia molhada, onde o oceano encontra a praia. Poucos sortudos, de pés molhados, entram nesse gostoso papo.
Mas, vez por outra, como nesta semana, o tom do diálogo muda.
A massa de ar polar que congelou o Centro-Sul do país trouxe, a reboque, a mais potente e carioca forma de mar encrespado: a ressaca vinda de Sul-Sudoeste, que acompanha um vento gelado da mesma direção.
A Marinha reportou assustadores avisos de mau tempo esta semana. Para a região que compreende o Estado do Rio de Janeiro, a previsão era de ondas de até sete metros na área oceânica e de até seis metros na zona costeira. Na arrebentação, à vista da praia, essa medida se convertia para ainda aterrorizantes três metros e meio de onda.
É neste momento, normalmente, que o mar cobra o espaço que lhe foi tomado indevidamente pela cidade. Na Zona Sul, o metro quadrado mais caro do Rio, a briga pelo território acontece frequentemente no trecho próximo ao Posto 11, no Leblon. Lá, a ondulação de Sul-Sudoeste – talvez por uma condição geográfica sutil e por uma possível relação com as áreas de bloqueio das Cagarras – entra com mais potência, avançando sobre o calçadão e pelas pistas da Avenida Delfim Moreira.
Num dos grupos de surfistas que acompanho, a brincadeira é apostar se o mar vai lamber apenas o calçadão, se passa a ciclovia, se alcança a primeira faixa de rolamento da via ou se chega à segunda faixa, aproximando-se dos prédios. Na noite de quinta-feira, quem apostou no pacote completo ganhou. Era barbada.
O fenômeno do avanço do mar no Posto 11 não é recente. Há uma entrevista clássica feita pela então repórter iniciante Glória Maria a Raul Seixas, que está no filme “Raul, o início, o fim e o meio”, que fala sobre o assunto. No vídeo, Raul, que teve o carro amassado por uma onda em plena pista da Delfim Moreira, explica:
“A onda tá certa, a onda tá certa. O que tá errado é esse negócio de aterro, desses prédios, tomara que arrebente tudo isso aí (…). A natureza está certa.”
Raul tinha um ponto. Aquele trecho da orla, assim como muitos outros ao longo da costa do Rio, tem sido cobrado pelo mar a cada ondulação de Sul-Sudoeste que encosta na cidade. No mundo ideal da boa relação entre os patrimônios urbano e natural, o trecho da pista mereceria ser devolvido à natureza. E, a essa reentrância, o carioca deveria dar o nome de Curva do Sudoeste. O vento mereceria a deferência.
Perto dali, há um exemplo de ótima relação do cidadão urbano com a natural. Ondas e surfistas, integrados e em harmonia, duelam em vagas gigantes perto da pedra do Canto do Leblon. O pico, conhecido pelo superlativo nome de “Pontão do Leblon”, sempre acorda em ondulações de Sul-Sudoeste. Os surfistas cariocas mais corajosos e bem preparados esperam, muitas vezes, centenas de metros atrás da pedra, pela maior parede do dia. Em dias de ressaca ainda mais potente, outra montanha d’água acorda, bem adiante, na laje de pedras perto do Hotel Sheraton.
A diferença é que, na conversa dos surfistas com o mar, há um diálogo sustentável e eterno. Desconfio que, se o grande engenheiro André Gustavo Paulo de Frontin, que projetou a Avenida Meridional (depois renomeada de Delfim Moreira), soubesse mais sobre as ciências da natureza, como essa gente das pranchas, o Rio de Janeiro teria orgulhosamente um lugar na orla onde o vento, literalmente, faria a curva.