Gaste um instante para olhar o céu do Rio
De manhã ou no fim do dia, os biguás estão lá, entre as Ilhas Tijucas e o continente, em formação de "v", à espera de um olhar mais atento dos cariocas
De onde eu vim, a gente ainda olha o céu. Sou do Rio.
Em algum lugar da alma do carioca, resiste um encantamento pelo poder metafísico de seu patrimônio natural – como uma resposta rebelde ao ritmo frenético da metrópole.
É como se ele insistisse – cariocas são teimosos – na ideia de que, mesmo com toda a Brahma e com toda a fama, a cidade ainda caminha na linha fina entre a brutal selva de concreto e o mais sutil e imperceptível pulso da natureza.
Para achar esse sopro de eternidade, é boa a dica de olhar o céu. Vale se conceder o direito de usar o verbo “olhar” transitivo direto, aquele que carrega o sentido vital de “admirar com muita atenção, absorto no próprio pensamento”.
Lá, no azul-céu-claro-médio-ciano, uma turma de aves passeia todos os dias em formação de seta, também chamada de “V”, a apontar, de manhã, para o continente e, no fim da tarde, para o mar.
São os biguás, aves pretas com olhos cor de jade conhecidas na ciência pelo nome de Nannopterum brasilianus, que costumam voar entre as Ilhas Tijucas, onde vivem, e duas generosas reservas de peixe, a Lagoa Rodrigo de Freitas e a Baía de Guanabara.
As aves alteraram, anos atrás, a rotina de alimentação. A fonte original de peixes, as lagoas da Barra, foi de tal forma impactada pela poluição que afugentou parte da revoada. Os níveis de oxigênio na água, de tão baixos, não permitem o fluxo da vida. A este fenômeno, dão o pomposo nome de eutrofização. Eu prefiro chamar de morte mesmo.
Mas voltemos à vida com os arejados biguás em sua rotina carioca.
Ei, você, que lê este texto com preguiça ou no meio do trabalho, acorde cedo, em dia de céu azul, para observar o bando chegando, em formato de seta. Vale o esforço.
Em tempo de pandemia, o melhor é assistir ao incrível voo de dentro d’água, depois da arrebentação. Flutue, sozinho ou com algo que lhe segure na superfície, insista, conceda-se o direito de, numa manhã quente do ano, simplesmente olhar o céu sem compromisso, com sal nos poros e a serenidade que só o mar é capaz de construir dentro da gente.
Mire para a rota dessas aves. Depois que saem das Ilhas Tijucas, alguns bandos preferem o voo serpenteado pela Pedra da Gávea e pelo Morro Dois Irmãos; outros se mantém fiéis à imensidão azul do mar.
A porta de entrada no continente é o Leblon. Organizados, os biguás driblam sem medo os prédios mais altos da orla, como o do antigo Hotel Marina, cujo letreiro, eternizado pela cantora de voz rouca de Fullgás, já não acende mais.
A primeira escala são as árvores da orla da Lagoa Rodrigo de Freitas, onde descansam antes de mergulhos precisos no espelho d’água, em busca de tainhas, tilápias e outras iguarias locais. Mas nem sempre os cardumes da velha Sacopenapã dão conta do recado: parte das aves avança por Humaitá e Botafogo, faminta, à cata dos peixes mais gordos da Baía de Guanabara.
Uma rápida pausa no voo para explicar a escolha da área de alimentação dos bichos:
A baía que recebe a matéria orgânica de várias cidades metropolitanas também é bem poluída, mas tem uma importante vantagem sobre as lagoas da Barra: a troca intensa e constante de água com o oceano, o que não acontece na Zona Oeste. Já a Lagoa Rodrigo de Freitas é bem mais saneada. Com um pouquinho mais de investimento do poder público, poderia até ser balneável.
Depois de ataques certeiros aos peixes, chega a hora de os biguás, cariocas de alma, lagartearem fora d’água. Os bichos abrem as asas ao sol e ficam parados, a contemplar o ócio, quase como quem aplaude o poente do Arpoador, até que o calor se encarregue de secar as penas.
No fim do dia, as revoadas seguem de volta, como setas, no mesmo eixo do vento Sudoeste, só que na direção contrária. Ao alcançar o mar, na altura do Leblon, tomam uma transversal de volta às Ilhas Tijucas. Na passagem do bando, o sol já está baixo, muitas vezes escondido atrás do Morro Dois Irmãos, e o céu, não raro, assume matizes de difícil descrição. É algo entre rosa-alaranjado-avermelhado-azulado-arroxeado-e-outras-cores.
Aí, amigo leitor, se você não conseguiu ver o espetáculo dos biguás cedinho, esta é a última chance do dia. Escape, corra para o mar, antes que escureça, e acompanhe a sucessão de revoadas no fim de tarde. Vale a pena.
Os biguás reforçam a ideia de permanência da natureza a sobrevoar a impermanência da cidade.
Afinal, os índios, lá atrás, já os viam e deram nome às aves: Mbi + guá, pé penugento, em tupi-guarani.
Nós, hoje, ainda os vemos. Mas, claro, essas aves também nos percebem, lá do alto. Gastar (ou ganhar) instantes do dia a olhar o céu pode ser o caminho para que, no futuro, nós, cariocas, sigamos sendo observados como pequenos botões em movimento espalhados pela mais bonita cidade do mundo.
Sobre os autores das fotos que ilustram este texto:
Fotos 1, 2 e 3 de Fabio Minduim, um filho do mar, fotógrafo de paisagens, publicidade e esportes de ação. Minduim é dono de um dos olhares mais sensíveis sobre as paisagens aquáticas da cidade e hoje transforma suas imagens em arte. Foi convidado recentemente pelo Instagram para expor uma de suas fotos em Nova York.
Foto 4 de Carlos Secchin, conservacionista e um dos maiores fotógrafos submarinos do Brasil, autor de livros como “Mar do Rio”, “Parque Nacional Marinho dos Abrolhos”, “Arquipélago de Fernando de Noronha”, “Ilha Grande” e “Peixes do Brasil”. Já recebeu o Prêmio Nikon International na categoria foto submarina.
Vídeo de Thiago Costa, surfista amador e autor do projeto @100tubosrj. Ele se dedica a surfar tubos no Rio de Janeiro em pelo menos 100 dias por ano, sempre com uma câmera de vídeo. Como está todo dia na água, além das ondas, ele faz belos registros da natureza carioca.