Uma conversa com Suzana Nascimento, estrela do monólogo Calango Deu!
Apesar de ter adotado o Rio como lar há mais de uma década, a atriz Suzana Nascimento, nascida em Juiz de Fora, ainda cultiva ligações profundas com seu Estado natal. Por cinco anos, ela empreendeu uma vasta pesquisa de hábitos, expressões, histórias reais e folclóricas, personagens, símbolos, músicas e crenças do universo popular mineiro – “um […]
Apesar de ter adotado o Rio como lar há mais de uma década, a atriz Suzana Nascimento, nascida em Juiz de Fora, ainda cultiva ligações profundas com seu Estado natal. Por cinco anos, ela empreendeu uma vasta pesquisa de hábitos, expressões, histórias reais e folclóricas, personagens, símbolos, músicas e crenças do universo popular mineiro – “um projeto de vida”, como ela define. Todo esse material coletado foi transformado pela própria Suzana em um delicioso monólogo, Calango Deu! – Os Causos de Dona Zaninha, que, desde a estreia, em novembro de 2012, vem conquistando o público carioca ao longo de sucessivas temporadas. De volta ao circuito, desta vez no Teatro Maria Clara Machado, a atriz encarna novamente a personagem do título, típica senhorinha de uma pequena cidade rural de Minas: afável, engraçada, meio fofoqueira e dona de um tipo bem particular de sabedoria.
O blog conversou com a atriz. Confira:
De onde veio a ideia da peça e como foi o processo até que ela chegasse ao palco?
“Calango deu! Calango dá! Tico-tico jogou pedra no gogó do sabiá./A minha mãe disse que eu parasse de cantar, que cantar puxa pro peito, e o peito pode rebentar./E com o peito rebentado eu não posso mais cantar./Eu vou lhe contar um causo que ocê vai admirar.” No dia em que eu ouvi meu pai, seu José Mesquita, cantando esse calango – um gênero musical típico do interior, cantado em rimas improvisadas ou decoradas, em desafios carregados de humor –, foi o meu peito que ficou apertado e eu descobri que teria que falar disso. Cantadores de causos e cantadores são geralmente pessoas mais velhas e estão indo embora. Como eternizar essas origens diante da boca enorme do tempo, que engole tudo? Eu queria falar sobre o tempo. Morando longe da família há alguns anos já, comecei a me “cardiovasculhar” (inventei essa palavra e fiquei muito feliz por isso). Foi um processo de escavar, alumiar “sabências” acumuladas por aqueles que me formaram e desenredar um tanto de lembranças que eu fui guardando em conserva, de cor, de coração, como eu aprendi com o meu mestre contador de histórias, o Gregório. E assim, pelo prisma da arte, me ocupei das tarefas de talhar, costurar, inventar, compor e compartilhar esse tesouro encontrado. Não tenho dúvidas de que essa peça surgiu da saudade, de uma vontade de religar. A frase que abre o espetáculo é um provérbio africano que diz: “Quando um velho morre, uma biblioteca se incendeia”. E foi o ponto que iluminou meu feliz encontro com o diretor, Isaac Bernat. Convidei o Isaac para dirigir por ser um grande ator e diretor super sensível, além de ser uma pessoa linda e pesquisador da arte dos mestres da palavra, principalmente africanos, os griots. Com seu olhar cuidadoso, ele me conduziu a partir do material que eu ia apresentando no processo. Convidei a Aline Mohamad, amiga e produtora, que acreditou no projeto e adotou o Calango ainda “fiote”. A personagem já existia muito antes da peça, contando causos em encontros e simpósios e ganhando intimidade com o público. Chegou o momento em que me senti preparada para enfrentar o teatro e dar uma casa para a Dona Zaninha. Editais! Fomos contemplados com o extinto Fate, Fundo de Apoio ao Teatro, e a partir daí, montei uma equipe de pessoas muito talentosas e amigas e formamos amorosamente a Família Calango.
Em quem o texto se inspira? Quem é a dona Zaninha da vida real e como essas histórias foram sendo pinçadas e costuradas?
A dona Zaninha faz parte da minha família de histórias. Fui construindo ao longo dos anos um conjunto de histórias que me tocam, que eu escolhi e que me escolheram. A personagem não existe numa única pessoa, é um mosaico de memórias: uma música do meu pai, uma costura da minha mãe, um causo da minha avó, um jeitinho de rir da tia, uma palavra engraçada da vizinha e por aí vai. Durante a pesquisa, que durou 5 anos, fui reunindo causos, expressões, superstições, receitas, hábitos – sem pressa –, enquanto fazia outros trabalhos, pesquisando em livros, sites, prosas com muitas pessoas até ter a necessidade de dividir tudo em categorias. A costura desses elementos foi acontecendo ao longo dos ensaios, com a ajuda do Isaac, para que o espetáculo escorregasse pelo espectador de forma leve, mas profundamente.
As histórias que são contadas no espetáculo se prestariam muito bem a cenas com mais de um ator – e, no entanto, só há você no palco. A ideia, desde o início, sempre foi de fazer um monólogo ou chegou-se a pensar em montar de outra maneira?
Sinceramente, nunca tive desejo de encenar a peça com outro formato, principalmente porque a ideia era falar dessas pessoas que evocam universos inteiros pela palavra e pelo jeitinho ingênuo e malicioso ao mesmo tempo. Um único contador de causos, sentado num banquinho de madeira, faz a ponte entre os seus ouvintes e o maravilhoso, enquanto talha um fumo de rolo ou corta uma folha de couve. Esse é o exercício. O meu outro em cena é o público. É com ele que eu contraceno. Ele é ativo, pode falar, toma café, cachaça, me ajuda a contar as histórias. Esse encontro tão potente e que ecoa em nós mesmo após o término do espetáculo é o meu objetivo.
O modo como você interage com a plateia durante a peça já deu margem a situações curiosas?
Me apresentei na FITA 2014 – Festa Internacional de Teatro de Angra, um festival bem conhecido. Gracindo Jr. Estava na primeira fila e sorria do início ao fim, até se emocionar muito no final. Quando o espetáculo terminou, com a plateia aplaudindo de pé extasiada, ele subiu no palco sem passar pelas escadas e veio de joelhos até mim, para beijar meus pés. Eu, estupefata, abaixei e pedi a ele para não fazer aquilo. Afinal, era o Gracindo Jr., grande ator, ali, de joelhos diante de mim. Fiquei louca. Nos levantamos juntos e ele me disse cheio de lágrimas: “Em toda a minha vida, nunca vi nada tão lindo no teatro. Quero aprender a fazer isso!” Choramos juntos por aquele momento tão lindo. E ele me disse ainda que o pai dele estava ali do lado dele durante todo o espetáculo. Ah, detalhe: Gracindo Jr. era jurado do festival. E a peça está indicada em oito categorias, aguardando a premiação em março.
Outra: em todas as sessões, dona Zaninha oferece uma cachacinha para alguém da plateia. Normalmente ela pergunta “quem quer?”, e sempre alguém se pronuncia. Um dia, quando eu perguntei, rapidamente uma senhora falou “eu quero”. Quando servi a cachaça a ela e comecei a conversar ela me disse: “é a segunda vez que eu venho ver essa peça. E fiz questão de chamar minhas amigas pra virem hoje porque é meu aniversario e eu decidi comemorar meus 80 anos com você. Um brinde!”. Nesse momento a plateia veio abaixo com reações do tipo “aaaahhhhh” e aplausos, e eu fiquei muito emocionada e grata. Cantamos parabéns pra ela no meio do espetáculo e brindamos com a cachacinha mineira.
Mais uma: na peça, dona Zaninha ensina algumas simpatias para moças solteiras, pra curar certas coisas e tal. E nesse momento, uma senhorinha de cabelo de algodão, no mínimo 80 anos, levantou a mão pra chamar minha atenção. Eu fui a ela. A senhora falou em alto e bom tom: “Eu quero que você me ensine como arrumar um negão!”. Gargalhada geral. Eu, pensando que não tinha entendido, pedi pra ela repetir. E ela; “um negão, quero saber como faz pra arrumar um negão. Negão é que é bom. Não nega nada!”. Eu falei com ela que iria lembrar e dali a pouco falaria. Uns 40 minutos de peça depois, ela levantou a não de novo e eu parei pra falar com ela. E ela: “quero saber se você lembrou como eu faço pra conseguir um negão!” Não teve jeito. Me lembrei de uma simpatia para arrumar namorado que eu já tinha no meu material pesquisado, parei o roteiro da peça e dei a receita pra ela. E todo mundo se divertiu muito.
A peça já está em cartaz há três anos. Você ainda pretende encená-la por muito tempo?
Sim, sempre. Tenho este trabalho como uma pérola que guardo com profundo amor. E pretendo levar para todo canto, pois acredito verdadeiramente no que o espetáculo diz. É uma realização plena poder dizer o que se acredita através de um trabalho. E pela linda aceitação que ele tem, acredito que ainda tenha muita estrada pela frente, e muitos vôos também. As pessoas costumam dizer que com o passar do tempo a tendência é melhorar cada vez mais, pois eu vou gradativamente me aproximando da dona Zaninha. Talvez com menos vigor que hoje, mas dona Zaninha ainda vai contar muito causo nesse mundão sem porteira!