Uma conversa com Letícia Isnard, de volta aos palcos em peça de Neil LaBute passada na madrugada seguinte aos atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova York
Quase um ano após dar à luz sua primeira filha, a atriz Letícia Isnard está de volta aos palcos. Na próxima sexta (27), ela estreia Marco Zero, montagem de um texto do americano Neil LaBute, considerado uma das primeiras “respostas artísticas” aos atentados de 11 de setembro de 2001, contra o World Trade Center, em […]
Quase um ano após dar à luz sua primeira filha, a atriz Letícia Isnard está de volta aos palcos. Na próxima sexta (27), ela estreia Marco Zero, montagem de um texto do americano Neil LaBute, considerado uma das primeiras “respostas artísticas” aos atentados de 11 de setembro de 2001, contra o World Trade Center, em Nova York. A trama se passa na madrugada do dia 12 de setembro, menos de 24 horas após a tragédia, portanto. Em cena estão Ben Harcourt (Tárik Puggina), que trabalha próximo ao WTC, mas falta ao emprego no dia da tragédia porque está na casa de sua amante, Abby Prescott, papel de Letícia. A direção é de Ivan Sugahara, parceiro de longa data da atriz.
Letícia falou ao blog sobre a peça, sobre a influência dos recentes atentados em Paris na montagem e sobre a vida de mãe, entre outros assuntos. Confira!
A peça estreia ainda no calor dos recentes atentados em Paris. Em que medida a tragédia influenciou o processo de realização da peça?
Os atentados de Paris aconteceram exatamente treze dias antes de estrearmos a peça, e teve um impacto enorme no nosso processo. No início dos ensaios, eu pensava muito sobre esta distância temporal e territorial do fato: por que falar de atentados em Nova York em 11 de setembro de 2001 em pleno Rio de Janeiro em dezembro de 2015? Infelizmente, esta recente tragédia em Paris responde um pouco a esta pergunta: porque o terrorismo não acabou e pode acontecer a qualquer hora e em qualquer lugar. E isso é o mais apavorante: sua imprevisibilidade e a invisibilidade de seus autores, tornando-o uma ameaça constante e global, mundial. Ou seja, estamos todos implicados nisso, sujeitos a esta nova realidade desde o 11 de Setembro. Sem dúvida, este fato trouxe um outro peso, tornando a peça ainda mais pertinente e contundente, intensificando muito nosso comprometimento com a abordagem.
O texto do Neil LaBute é geralmente apresentado como uma das primeiras “respostas artísticas” à tragédia de 11 de Setembro. Como você avalia a força da arte diante de episódios tão trágicos como esse? A arte, como se diz, realmente salva?
É realmente muito complexo e difícil elaborar um trauma desta magnitude. E, enquanto episódio, digamos, inaugural, deste novo contexto mundial de luta contra o terror, o 11 de Setembro afetou a vida de todos nós. Mas em que medida? Sempre me interessei muito por esses momentos em que um evento histórico determina futuros e recoloca trajetórias nas vidas das pessoas, ou seja, o macro intervindo no micro. Acho fascinante pensar sobre isso. E, sem dúvida, acredito que a arte tenha um papel extremamente potente no sentido de elaborar o trauma, de construir algum sentido, ou mesmo de apenas expurgar tamanho horror. Daí a necessidade da arte, um dos motivos pelos quais não poderia viver sem ela. Mas, como o próprio autor coloca, como dar conta de uma situação tão egoísta num momento de altruísmo nacional, ou seja, como ter espaço pra uma discussão de casal num contexto de destruição tão colossal? A situação desse casal pode ser compreendida como um paralelo com esse processo de desabamento e destruição total que acontece lá fora. Além disso, como dizia Dostóievski, nada como falar da sua aldeia para ser universal, daí situações de casal ou de família terem um espaço tão nobre na dramaturgia. Então o conflito desse casal, que tem inúmeras fissuras e frestas pelas quais podemos nos identificar, nos aproxima da situação, possibilitando que, em alguma medida, a gente se coloque nesse contexto de perda, devastação e destruição. Sempre lembrando que todo fim, por mais traumático e dolorido que seja, é sempre também uma possibilidade de recomeço, de renascimento, de reconstrução.
Como o projeto chegou até você e que impacto o texto lhe causou em sua primeira leitura?
Fui convidada pelo ator e produtor Tárik Puggina, que é também produtor da minha companhia Os dezequilibrados. Antes mesmo de ler o texto, já estava interessada não só pelo assunto, mas principalmente pelo autor. Já tinha assistido a algumas peças dele, como A Forma das Coisas e A Gorda, e tinha gostado muito. São textos cruéis, sarcásticos, inteligentes, surpreendentes. Numa primeira leitura, me incomodou um pouco o excesso de ironia num contexto de tanta dor e horror, mas hoje, chegando ao fim da primeira etapa do processo, correspondente aos ensaios, entendo isso como sendo parte da tal crueldade do autor, sua visão crítica dos americanos, sua autocrítica. A segunda etapa do processo é a temporada, quando continuamos descobrindo e experimentando o texto. Afinal, teatro é vivo, não acaba nunca, acontece todos os dias, oh, maravilha! E acho que ainda vamos descobrir muitos outros sentidos durante a temporada, ao experimentar esta ironia e sarcasmo com a plateia. A reação do público certamente vai enriquecer muito nosso trabalho, porque a peça é surpreendente.
Não faz tanto tempo, você esteve no elenco de uma novela de enorme sucesso, que foi Avenida Brasil. Você sente que a projeção da sua imagem para além da cena teatral, de alguma forma, ampliou o seu público? Você depara com reações de espectadores que não costumava deparar antes da Ivana?
Sem dúvida, a projeção que a televisão dá pra nós é determinante. Não resolve a nossa vida, encher o teatro é sempre um leão por dia, mas certamente a TV ajuda muito. Em geral, as pessoas se surpreendem que eu não seja como a Ivana, que eu seja muito diferente dela! Em geral também se surpreendem por me acharem mais jovem do que na TV; quando me vêem fazendo drama, e quando descobrem que tenho mestrado em Sociologia.
Você se tornou mãe recentemente. Como ter uma filha pequena em casa mexeu com o processo de realização da peça?
A maternidade muda tudo, como dizem. Uma dificuldade, além da exaustão de voltar a trabalhar com noites mal dormidas, é o trabalho em casa. A sala de ensaio é apenas uma parte do nosso trabalho, existe uma série de atividades que vão desde decorar texto até leituras, filmes e documentários que precisamos estudar, e fazer isso com uma bebê com menos de 1 ano não é nada fácil. Por outro lado, ser mãe me trouxe um olhar mais maduro, solidário e tolerante sobre as pessoas, mas também passei a dar um valor ainda maior à vida. Porque senti na carne o poder desse milagre e o quão delicado é gerar um ser humano, gestá-lo, trazê-lo ao mundo, fazer esta vida vingar, tanta fragilidade, choro, fralda suja, tanta dependência desse serzinho… E, diante disso, a morte, ainda mais a morte estúpida provocada por atos de violência, torna-se um absurdo ainda maior.
Você pode falar um pouco sobre a sua relação com o Ivan Sugahara, com quem você já trabalhou diversas vezes e foi casada? Como é essa parceria, como é o entendimento de vocês no trabalho e na vida?
Ivan é meu parceiro no teatro, na companhia e na vida. Nosso primeiro trabalho juntos estreou justamente poucos dias depois do 11 de setembro de 2001, lembro de vermos na TV enquanto estávamos ensaiando Bonitinha, mas Ordinária na boate Casa da Matriz, em Botafogo. Então já trabalhamos juntos há catorze anos. Já fomos amigos, já fomos um casal e, hoje, diria que somos irmãos! Nosso entendimento é imediato, não tem perda de tempo, é impressionante como nosso estímulo e resposta, tanto dele pra mim como de mim pra ele, é ágil e rende deliciosamente. É um luxo ser dirigida por ele, é um parceiro que veste a camisa, que não mede esforços para que o trabalho fique bacana, e é doce, delicado, bem-humorado, gentil, criativo, ousado e extremamente competente. Assim, ele cria um ambiente de profunda confiança e isso é fundamental pra que os atores se sintam com segurança pra se colocar em risco, se expor, surpreender. Sua capacidade de trabalho é impressionante e, pra mim, ele é, sem sombra de dúvida, um dos melhores diretores do nosso país.