Vai ter carnaval? Só Exu e Oxóssi para guiar
Os dois orixás serão enredos de um carnaval ainda sem data, mas que já mostra a força das temáticas africanas
Essa é uma das perguntas mais difíceis de se responder no cenário atual. Carnaval é aglomeração e está na contramão de tudo o que é possível em tempos de Covid-19. Oxalá permita que Exu e Oxóssi nos mostrem o caminho. Explico: os dois orixás foram escolhidos como tema de duas escolas do Grupo Especial, a Grande Rio e a Mocidade Independente de Padre Miguel.
A falta de perspectivas de uma vacina breve contra a Covid-19, a inépcia dos governos no combate à doença e a não adesão de parte da população ao isolamento social deixam o cenário ainda mais complicado. Ou seja, carnaval será uma equação bem difícil de resolver. Falo pelos blocos de rua, minha especialidade, mas principalmente pelas escolas de samba, que necessitam de tempo maior de planejamento. Mesmo com tantas incertezas, seis escolas do Grupo Especial já anunciaram seus enredos para o próximo carnaval, não necessariamente em 2021.
Chama atenção a direção apontada pelas quatro primeiras colocadas no carnaval de 2020. Todas vêm com temáticas africanas, mostrando um processo curioso de descolonização da formação brasileira, como define meu amigo Fabio Fabato. A revelação no último domingo de que Exu será o enredo da Grande Rio, com o título “Fala, Majeté! Sete Chaves de Exu”, criação da dupla Leonardo Bora e Gabriel Haddad, foi o ápice.
Bora explica que o protagonismo de Exu foi um desdobramento natural de anos de pesquisas, estudos e entrevistas para outros enredos, como Bispo do Rosário (2018), na Cubango, e Joãozinho da Goméia (2020), que deu o vice-campeonato à escola tricolor de Duque de Caxias.
“Nosso material de pesquisa convergia, há muito tempo, para Exu, personagem ultra contemporâneo nesse contexto de autoafirmação necessária das matrizes africanas”, diz Leo Bora, adiantando que o enredo vai passear por diferentes vertentes de expressão do orixá, dos lixões de Caxias à arte urbana.
Sobre a decisão da escola de anunciar um enredo mesmo sem certeza do que vai acontecer, Bora destaca: “Somos artistas e a cabeça não para. Manter o trabalho criativo foi um estímulo para nós, mas também para toda a comunidade que teve sua vida social interrompida. É preciso entender que uma escola de samba vai muito além do desfile, é sociabilidade pura”, analisa.
Na mesma direção foi a Mocidade Independente do Padre Miguel, com o enredo “Batuque ao Caçador”, de Fábio Ricardo. Será uma homenagem a Oxóssi e à bateria da escola, cuja gramática é o aguerê do orixá. Segundo Fabato, responsável pela sinopse, a escola verde e branca já vinha se aproximando do universo afro com o enredo de 2020, “Elza Deusa Soares”. “Agora fará de fato um retorno aos enredos africanos. O último nessa linha foi Mãe Menininha, em 1976”, conta Fabato. Sem previsão de data de retorno das atividades de quadra, a escola estuda novos formatos para eventos tradicionais como disputas de samba, e vem realizando lives semanais pelo seu canal no youtube.
Sem certeza de quando haverá carnaval, o presidente da Portela, Luis Carlos Magalhães, não vê muitas perspectivas para fevereiro, mas afirma que a escola está analisando alguns temas. “Escolher enredo e samba é fácil, o que nos preocupa é a questão emergente da saúde das pessoas e a financeira. Cerca de 20% dos nossos recursos vêm de atividades realizadas na quadra o ano inteiro, como shows e feijoadas. Tudo suspenso, sem data de retorno”, diz, trazendo outras perspectivas ao dilema.
Mas deixa pistas sobre um possível enredo. “As escolas de samba são o último baluarte de defesa da cultura negra, o que hoje é fundamental. Acho que a Portela está devendo isso para um futuro próximo”, revela, ao ser provocado por mim, portelense que sou. A última vez que minha escola trouxe um enredo de matriz afro em 1972, com “Ilu Ayê”.
“Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor” será uma mensagem contra o racismo a partir de grandes personalidades negras, tema escolhido pela escola de Nilópolis, que já tem tradição em abordar enredos sobre racismo, negritude e raças. Exu, inclusive, foi tema da comissão de frente do carnaval de 2020, que falava sobre a rua.
O simbolismo desses enredos em um carnaval seguinte à pandemia – seja ele quando for – traz esperança e alento. Cada vez mais, as escolas de samba jogam luz em debates que precisam de visibilidade e força, para que haja transformação social. Escolas de samba são poderosos meios de comunicação. Agora é esperar e torcer para que venha logo a cura do Covid-19 e que não haja mais mortes. E aí sim, que possamos de novo ter o nosso carnaval. Oxóssi e Exu nos guiem nessa caminhada! Evoé!
Rita Fernandes é jornalista, presidente da Sebastiana, idealizadora do projeto Casabloco e pesquisadora de cultura e carnaval.