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Rita Fernandes

Por Rita Fernandes, jornalista Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Um olhar sobre a cultura e o carnaval carioca
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A sagrada família do Quilombo de Vargem Grande

No Parque da Pedra Branca, os netos de Astrogilda mantêm hábitos da roça, restaurantes divinos, passeios guiados e experiências que só mesmo indo até lá

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Atualizado em 12 mar 2021, 13h26 - Publicado em 12 mar 2021, 13h24
Os netos de Astrogilda, a matriarca que deu origem ao quilombo: Sandro e Maria (de pé) e Pedro e sua mulher, Nilza (sentados).  (Rita Fernandes/Arquivo pessoal)
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Em meio a tanto desalento, foi no Quilombo Cafundá Astrogilda, em Vargem Grande, que experimentei na quinta-feira passada o significado da palavra comunidade. Comunhão, grupo de pessoas que compartilham algo comum a todos. Resumindo, comunidade é união e compartilhamento. Ali, no meio daquela família quilombola, tive a honra de ser recebida pelos descendentes de Astrogilda e me senti em casa.

A experiência no Quilombo de Vargem Grande é única. Fui em busca das rezas de Maria, neta de Astrogilda que herdou da avó, a matriarca da família Santos Mesquita, sua arte ancestral. Minha amiga Alinne Prado, apresentadora de tevê, havia me contado sobre a força da sua reza e eu, nesses tempos tão pesados, resolvi ir até lá.

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Maria, que herdou da avó o poder de curar pela reza. (Rita Fernandes/Arquivo pessoal)

O caminho já chama atenção quando a gente sai do asfalto e se embrenha pela mata. Nossa primeira parada foi no “Tô Na Boa”, restaurante a céu aberto que convida você a se sentar sob as árvores. Fomos recebidas por Paulinho e Gisele, pai e filha, naquele recanto sagrado. Com cara de quintal, árvores no entorno, o primeiro prato servido é afeto. Paulinho logo puxa conversa, sentando-se à mesa. Como Alinne é frequentadora, logo veio uma bandeja de pasteis de camarão com catupiry, que eu infelizmente não podia comer. Me mandaram os de costela, algo para se comer de joelhos. O carro-chefe da casa é o risoto de camarão, com muito camarão! Para os alérgicos, como eu, a pedida é o prato que leva o nome da casa, uma tábua de filés cobertos com queijo e alho tostadinho, e muitos acompanhamentos.

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Os pasteis de camarão e catupiry, carro-chefe do cardápio.
Os pasteis de camarão e catupiry, carro-chefe do cardápio. (Rita Fernandes/Arquivo pessoal)

Os drinques são um capítulo à parte. Quem comanda o bar é o haitiano Vlad, que está no Brasil há apenas um ano, fugido do país onde, segundo ele, não dá mais para viver por conta da violência. Vlad senta com a gente e conta sua história, sobre tudo o que deixou para trás, do Bistrô Bar que tinha na cidade de Cayos, onde estudou hotelaria e turismo. Os drinques são feitos com frutas da época, alguns com nomes que ele mesmo deu, como o Mulher Rosa, uma mistura de gim, morango e leite condensado, e o Gim Brasil, com limão e manjericão.

Alinne com um drinque feito com fruta-do-conde pelo haitiano Vlad.
Alinne com um drinque feito com fruta-do-conde pelo haitiano Vlad. (Rita Fernandes/Arquivo pessoal)

Gisele, a dona, é uma das bisnetas de Astrogilda e herdou dela o jeito em ajudar quem precisa. No “Tô Na Boa”, ela emprega 31 pessoas, a maioria locais, e, mesmo em tempos de pandemia, não pararam de trabalhar. O restaurante funciona há dez anos e se tornou uma espécie de centro cultural, comunitário e de assistência social, local de muita conversa e de acolhimento.

o haitiano Vlad que virou barman e Gisele, bisneta de Astrogilda, dona do Tô Na Boa.
Vlad, que virou barman, e Gisele, bisneta de Astrogilda e dona do Tô Na Boa. (João Pedro Rocha/Arquivo pessoal)

Do restaurante, seguimos para o Parque Estadual da Pedra Branca. A pé, dá uma caminhada de meia hora até a cachoeira, mas pode-se ir de carro uma parte do caminho e para antes da cancela que marca a entrada no parque. Lá em cima estão as casas de alguns dos descendentes de Astrogilda. Os irmãos Pedro, Maria, Jorgina e o primo Sandro, todos netos da matriarca, cresceram naquelas terras, aprendendo a plantar bananas, aipins, pescar camarão de rio e outras artes agrícolas. “Aqui é vida de roça”, diz Pedro, que até hoje vive do plantio e da venda de banana e aipim nas feiras de Vargem Grande.

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É na casa de Pedro que funciona o Bar da Nilza, restaurante de comida feita no fogão à lenha comandado por sua mulher. “Precisa provar o feijão e a taioba”, me diz Maria. Impossível naquele dia em que eu já tinha me fartado de pastéis.

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O Bar da Nilza, que serve comida feita no fogão à lenha. Ao lado, o rio para um mergulho. (Rita Fernandes/Arquivo pessoal)

Ali, ao lado do Bar da Nilza, tem uma entrada para o banho no rio. O rio e a mata nos cercam por todos os cantos, e a gente se sente no paraíso. É dali também que sai o bloco de carnaval do Quilombo – tinha que ter um bloco, né? –, que só anda por ali mesmo, uma farra familiar. Claro que quando tiver carnaval de novo, eu vou! Preciso ver isso de perto, como também as festas realizadas nos dias de São Jorge, em abril, e de Zumbi, em novembro.

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O Museu Cafundá Astrogilda em construção.
(João Pedro Rocha/Arquivo pessoal)

Mais acima, de onde se vê lá longe a praia do Recreio, está a casa do Sandro e atrás dela o Museu Cafundá Astrogilda. Ainda em fase de construção, foi erguido pelas mãos dos muitos membros da família Santos Mesquita (são 240 famílias de descendentes em toda a área do Quilombo), seguindo técnicas bem antigas. Todo de madeira e taipo, o museu, quando pronto, vai guardar os objetos sagrados que pertenciam ao terreiro de Umbanda chefiado pela matriarca e assim narrar sua história e a daquele lugar.

Sandro trabalha no INEA e se tornou guarda-parque. Ele é responsável pelo projeto Ação Griô, temporariamente suspenso por causa da pandemia da Covid-19, que promove visitas de alunos de escolas públicas e privadas. As crianças ouvem as histórias contadas pelos membros da família, enquanto visitam o lugar. Mas qualquer pessoa pode agendar e ir até lá.

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A pequena capela com o altar do terreiro de Umbanda de Astrogilda, Maria reverencia a avó.
A pequena capela com o altar do terreiro de Umbanda de Astrogilda, Maria reverencia a avó. (Rita Fernandes/Arquivo pessoal)

Atrás do Museu, num pequeno cômodo de frente para um ainda jovem baobá, está a capelinha, com o altar que pertenceu ao terreiro. Ali, de frente para as enormes pedras presas àquela terra e diante de toda a mata, Maria faz sua reza. Daquelas que hoje em dia a gente pouco encontra, tradição passada por sua avó. Naquela reza e naquele colo eu encontrei uma paz imensa, traduzida na presença imensa de Oxóssi e de Xangô.

O Rio de Janeiro pode estar sofrido, com suas feridas abertas pelos maus tratos. Mas ainda é lindo e resguarda, como nenhum outro lugar, possibilidades para que a gente possa se reconectar. Eu recomendo muito esse passeio, quando essa situação toda melhorar e  possamos circular de novo livremente. Enquanto isso, o jeito é ficar em casa, usar máscara e ajudar a controlar essa pandemia. Quando tudo estiver bem, não deixe de ir ao “Tô Na Boa” e ao Quilombo Cafundá Astrogilda. Namastê a todos vocês!

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Rita Fernandes é jornalista, escritora, pesquisadora de cultura e carnaval.

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