Arte negra na veia
Artistas negros ocupam a timeline de João Cavalcanti e revelam o Brasil que muitos não querem ver
João Cavalcanti, cantor e compositor carioca, resolveu usar sua rede social para dar visibilidade a artistas negros. Desde a semana passada, iniciou uma série de posts com os temas “Eu ouço” e “Eu vejo, em que apresenta artistas pelos quais tem profunda admiração. A surpresa foi João apresentar artistas tão potentes, alguns que eu não conhecia, o que me chamou ainda mais a atenção. Arte negra na veia, de encher a alma de alegria.
Foi no domingo que me dei conta, com o vídeo da cantora Aiace em “Cordeiro de Nanã”. No post, João não dizia mais que uma única frase: “Eu ouço Aiace”. Querendo saber mais, corri para a página dela.
Baiana de Salvador, Aiace é uma surpresa e tanto. Filha do compositor Gileno Félix, criou o grupo Sertanília, em 2010, e lançou seu primeiro trabalho solo em 2017, o disco “Dentro Ali”, que traz as participações especiais de Luiz Melodia e Lazzo Matumbi. Com um trabalho muito consistente, Aiace tem influências de um sertão que ela diz ser anterior a Luiz Gonzaga, com cocos e maracatus, já cantado por artistas como Elomar. Fico sabendo também que a moça carrega algumas premiações. “Meu primeiro contato com Aiace foi por causa do Prêmio da Música Brasileira, ano passado, em que ela concorreu e eu era jurado. Fiquei espantado com a qualidade e a voz”, diz João.
Volto à página dele e encontro mais cinco publicações. Caio Prado, do trio Não Recomendados, canta a capella “Não Sou Teu Negro”, e a primeira estrofe bate no peito como a força de tambor: “Não nasci pra te servir, nem te ouvir. Eu sou canto de zumbi, resisti. A desumanização é que faz tua condição, desde a colonização, no meu chão”.
“Eu ouço Josyara” apresenta a cantora, compositora e instrumentista nascida em Juazeiro, norte da Bahia, radicada há quatro anos em São Paulo, com seu violão cheio de elementos eletrônicos na música “Virá”, que João reposta no seu perfil. Chego ao clipe “Som Brasil”, com Nego Álvaro cantando “Pernambuco me deu maracatu, é um baque virado feito samba”. No post, o comentário dele, sublinhando “Sejamos sempre #antiracista! Importante dizer que num mercado majoritariamente branco, esse clipe foi escrito, dirigido, filmado e editado por Pretos”. Salve Nego Álvaro, abre a roda pro cateretê!
Completa a série o post “Eu vejo Samuel de Saboya”, e aí o coração explode de emoção. O artista plástico pernambucano, tão jovem, já ganhou mundo com a exuberância do seu talento, mas não tem a mesma visibilidade por aqui. Samuel acabou de estrear sua primeira exposição solo em Zurich, “A Bird Called Innocence”, “uma ode à negritude, vida e sonhos”, segundo ele. “No meio do caos, fico feliz de trazer vida e de continuar a mostrar que somos possíveis”, escreveu no seu perfil, sábado 6, data da estreia.
Fecho minhas incursões pelo perfil do @ojoaocavalcanti com a publicação de “Eu ouço Nilze Carvalho e PC Castilho”, cantando juntos “Pelourinho”, de autoria do PC e Luiz Perequê. “Quanta história tá na mão do tambor”, né, minha gente?
“Estou silenciado, sem conseguir compor. Indignado com o absurdo que é essas pessoas não serem ouvidas. A voz delas é muito mais importante do que as nossas nesse momento”, desabafa João, sob o impacto de tantas notícias pesadas e depois de ter vencido o Covid-19. “Precisamos rumar em direção à equidade, para sempre, porque um dia isso tudo vai ter que mudar”, me diz. Eu sinto a mesma coisa, João!
A timeline @ojoaocavalcanti está dedicada por tempo indeterminado a essa legião de Aiaces, Caios, Negos, Josyaras, Nilces, PCs e Samuels. A ajuda talentosa de Miriam Roya, sua mulher, companheira de trabalho e jornadas diárias com os três filhos, Tom (10), Luna (9) e Martin (3), tem sido decisiva nesses tempos de pandemia. Obrigada, pessoal!
Rita Fernandes é jornalista, escritora, idealizadora do projeto Casabloco, presidente da Sebastiana e pesquisadora de cultura e carnaval.