Lutamos por mais parques e espaços públicos nos subúrbios
Para democratizarmos a cidade, precisamos quebrar os muros da segregação
Ontem foi um dia simbólico para os brasileiros, uma data historicamente construída com objetivo de representar uma ruptura institucional. Infelizmente, mesmo após 199 anos do início da nossa tentativa de independência ainda falta muito para que ela se efetive plenamente.
É duro constatar que dia após dia, desde o primeiro sete de setembro de 1822, seguimos travando muitas lutas cotidianas por direitos. Lutando pelo fim da escravidão e suas consequências, por moradia, saúde e alimentação para todos. Assim como, por uma educação pública de qualidade, pela igualdade de gênero, por uma cidadania que garanta a acessibilidade, liberdade de expressão e representatividade popular.
Sabemos que as tensões políticas seguem, assim como no passado, compondo um jogo forte de interesses que acabam por colocar em lados opostos herdeiros de uma pequena elite exploradora frente a grande maioria da população trabalhadora.
Uma pequena síntese desses embates puderam ser observados essa semana, especialmente na manhã do dia seis de setembro, durante a derrubada de parte dos muros do antigo Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro.
Para entender melhor a importância desse processo nos reportamos a fala do diretor do Espaço Travessia, Marcelo Valle:
“Ontem, dia 06 de setembro de 2021, foram derrubados alguns metros do muro do Instituto Municipal Nise da Silveira, antigo Hospital Psiquiátrico Pedro II, o conhecido ‘Hospício do Engenho de Dentro’. Um ato simbólico, que marca o início das obras do Parque Municipal Nise da Silveira e, para alguns, representa o fim do manicômio do Engenho de Dentro. Esse ‘fim’ não é mérito de nenhum governante, ele vem sendo construído há muitos anos dentro de processo de desinstitucionalização conduzido pelos preceitos da Reforma Psiquiátrica Brasileira por trabalhadores da saúde, usuários, familiares e sociedade organizada, e representantes políticos num processo histórico de lutas, avanços e retrocessos.
Os muros do Hospício sempre tiveram suas serventias. Entre elas o silenciamento!
Embora silenciem, os muros têm muito a dizer, servem para delimitar lugares, espaços e propriedades. São sólidos, duros, altos e frios. Servem para separar, isolar e proteger. À sua maneira definem identidades e territórios – os do lado de lá e os do lado de cá, determinam quem está dentro e quem está fora. Embarreiram. Contêm. Afastam. Fecham. Segregam. Muros impedem os encontros. Alimentam desencontros e imaginários avessos. Os muros barram a visão. Escondem. Os muros trazem as marcas do tempo, dos conflitos, dos homens. Os muros desumanizam, por outro lado, os muros podem ser coloridos.
Os muros não podem ser esquecidos por quem os viu ou vivenciou, representados em pinturas de Edson Luiz Antunes, Norma Nascimento, Heitor Dico (presentes no acervo do Museu Imagens do Inconsciente) ou nas palavras de Otávio Ignácio: ‘O muro é muito bonito pra quem passa do lado de fora. É bem feito, bem arrumado. Mas para quem está aqui dentro é horrível. O muro não devia ser assim, deveria ter algumas aberturas. Este muro serve para fechar a nossa vista para o lado de fora. Nós nunca podemos ser considerados gente com um muro deste tapando nossa visão.’
Que a queda dos muros possibilite encontros com uma outra sociedade possível.”
A relevância tanto da queda dos muros como da abertura do parque é significativa para a transformação desse importante espaço histórico da região. Possibilitar a ocupação da área através de um parque público, oferecendo maiores opções de saúde, lazer e cultura para população suburbana é uma grande conquista. Porém, não podemos e nem devemos tentar apagar as duras memórias que envolvem toda essa história.
Muito antes dessas terras serem cortadas pelos tratores de hoje, ou mesmo antes dos jesuítas começarem a construir o que viria a ser o Engenho de Dentro, em contraposição aos domínios do Engenho Novo e do Velho Engenho de São Francisco Xavier, os Tupinambás já montavam suas tabas nesse chão. Viviam em aldeias, caçando e pescando ao longo dos mais de dois quilômetros do atual rio dos Frangos, afluente do rio Faria.
Mesmo após a expulsão dos jesuítas, em 1759, o caráter agrário e a lógica da exploração não parou. Muitos tropeiros cruzavam a região e também se beneficiavam das águas minerais, que deram nome a Água Santa, para tratarem suas enfermidades. Os escravos também cruzavam suas matas e procuravam se refugiar na Serra dos Pretos Forros, cultuando Todos os Santos ao resistirem por sua vida e liberdade.
No século XVIII, grande parte das terras foram concedidas ao oficial João Árias de Aguirre. No século seguinte a região começa a ser desmembrada e vendida, entre os proprietários que se destacam nesta época estão o Dr. Leal e o Dr. Francisco Fernandes Padilha.
O maior crescimento populacional do Engenho de Dentro se deu a partir de 1871, quando uma das maiores oficinas de trens da América Latina começou a ser construída na região onde hoje fica o Estádio Nilton Santos.
Em 1911 um grande terreno passa a sediar a primeira colônia agrícola destinada às alienadas vindas do antigo Hospício Nacional de Alienados. A partir da década de 1940, tornou-se então o principal centro psiquiátrico da cidade do Rio de Janeiro, renomeada como Centro Psiquiátrico Nacional, posteriormente, Centro Psiquiátrico Pedro II.
Atualmente o espaço abriga várias atividades que vão desde museu, exposições, bloco carnavalesco, rádio, teatro, esporte, entre outras.
Neste ponto trazemos uma entrevista com Erika Pontes e Silva, Diretora do Instituto Municipal Nise da Silveira que repercuti sobre muitas das atuais mudanças que vem ocorrendo:
O que representa a derrubada dos muros do Instituto Municipal Nise da Silveira?
“A derrubada dos muros que cercam o Instituto Municipal Nise da Silveira, representa um marco histórico para o Reforma Psiquiátrica no Rio de Janeiro.
O Instituto Municipal Nise da Silveira é uma Instituição centenária, com 110 anos de existência, com inúmeras denominações. Desde 2000, o antigo Centro Psiquiátrico Pedro II, instituição federal, foi municipalizado e passou a denominar-se Instituto Municipal Nise da Silveira.
Há cerca de três décadas esta instituição tem sido palco de inúmeras lutas pela Reforma Psiquiátrica, pelo fim do hospício, atuando de forma decisiva na discussão de políticas públicas de Saúde Mental no Rio de Janeiro e em nível nacional. Desde 2010, houve um incremento nesse processo, visando a superação do modelo hospitalar, a Desconstrução das práticas manicomiais.”
Como está sendo o processo de transição do Instituto para um Parque ?
“São 305 pacientes, que foram desinstitucionalizados na última década, todos como tratamento vinculados aos serviços territoriais, em especial, os Centros de Atenção Psicossocial. Pessoas com mais de cinquenta anos de internação, que na última década foram encaminhados para Serviços Residenciais Terapêuticos distribuídos pela cidade. Pessoas que passaram décadas internadas no hospício, em enfermarias Psiquiátricas, submetidas às práticas psiquiátricas tradicionais, muitas destas marcadas pela violência institucional (ex: lobotomia, eletrochoque, contenção mecânica, excesso de medicações, etc.). Muitas, nem nome possuíam, ou mesmo documentos de identificação. Nos prontuários eram identificados como “homem pardo”, “mulher branca”. Quando faleciam eram enterrados como indigentes.
Trabalhamos arduamente na desconstrução do Hospital Psiquiátrico. Substituindo às práticas antigas, por ações no campo da Saúde mental, através da arte, cultura, lazer, esporte e formação.”
Como ficam as atividades culturais, assim como, as de assistência e saúde com a criação do parque?
“O Instituto Municipal Nise da Silveira continuará com o trabalho de promoção de saúde, no tratamento de pessoas em sofrimento psíquico. Em que a arte e a cultura, ganham um papel fundamental nesse processo de desconstrução.
Alguns projetos que já funcionam no Instituto serão mantidos para população: Museu Imagens do Inconsciente; Ambulatório em Saúde Mental; Espaço Travessia; Centro de Convivência e Cultura Trilhos do Engenho, Ponto de Cultura e Arte Loucura Suburbana; Polo de Geração de Trabalho e Renda em Saúde Mental, Centro de Estudos do Instituto Municipal Nise da Silveira; Centro de Memória e Preservação; Memorial da Loucura no Engenho de Dentro; Centro Comunitário, etc. Além de vários outros serviços de diversas secretárias municipais, que já ocupam espaços no Instituto.”
Em meio a este debate que deve ser cada vez mais amplo, também trazemos as preocupações do coletivo Engenhos de Histórias, formado por moradores e pesquisadores da região:
“Estamos acompanhando o processo de construção do Parque Urbano Nise da Silveira, no Engenho de Dentro, que irá reutilizar o espaço do antigo Hospital Psiquiátrico Pedro II. Dentro de uma perspectiva de luta antimanicomial, entendemos que um Parque será muito mais saudável e libertário do que as violentas jaulas do antigo hospício. É um passo positivo que a Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro está dando, mas fazemos algumas ressalvas:
1) Estamos preocupados com a preservação dos prédios históricos que se encontram neste local. Manter a memória do que foi o antigo hospício é muito importante para as futuras gerações.
2) Estamos preocupados com os painéis de arte feita com grafite nos muros. Derrubar os muros é importante, mas precisamos preservar a arte que ali foi construída. No mínimo, chamando novamente estes mesmos artistas para contribuírem com o novo Parque.
3) Nós, do coletivo Engenhos de Histórias, como parte da sociedade civil organizada, estamos acompanhando as reuniões que estão acontecendo dentro do atual Instituto Municipal Nise da Silveira, mas entendemos que tais reuniões devam assumir um caráter amplo, democrático e deliberativo. Por isso, convocamos o maior número possível de entidades e cidadãos para que participem também.
4) É fundamental que a Prefeitura não viole os espaços de pesquisa científica – especialmente na área de saúde mental e coletiva – e de ações culturais que hoje funcionam dentro do futuro Parque. Pensamos que o Parque poderá estar integrado com a pesquisa científica e as diversas ações culturais que envolvem as organizações da sociedade civil vinculadas ao subúrbio carioca.
Que possamos juntas e juntos, de forma dialogal e democrática, construir, com o apoio da Prefeitura, um novo Parque Urbano que seja um espaço de lazer, pesquisa e cultura na zona norte do Rio de Janeiro, pois a vida pulsa nos subúrbios.”
Neste momento de estabelecimento do parque é fundamental mantermos diálogo constante entre todos agentes envolvidos direto e indiretamente para garantir que o parque não só saia do papel como possa se manter funcionando bem e de forma integrada a comunidade do entorno.
Vale lembrar que os subúrbios tem sido historicamente negligenciados de investimentos em equipamentos de cultura e lazer, logo nas regiões que comtemplam a maior parte da população da cidade. Precisamos que muitos mais parques sejam construídos ou preservados, tais como o Parque Ecológico da Água Santa, da Serra dos Pretos Forros, o Parque Verde de Realengo, o parque Ary Barroso, do Camboatá, da Serra da Misericórdia, da Fazendinha da Penha, entre outros.
Em tempos de revisão do Plano Diretor da cidade, de derrubada de alguns muros físicos, mas de tentativas de construção de outros meios de segregação, precisamos seguir juntos lutando pela efetiva democratização da cidade.
Para falarmos mais sobre a importância de espaços públicos de cultura e lazer nos subúrbios convidamos todos para um papo hoje, às 19h, no canal Iaras e Pagus no YouTube, onde falaremos bastante sobre a tentativa de criação do Parque Realengo Verde.