Rafael Mattoso Por Rafael Mattoso, historiador Curiosidades sobre o subúrbio carioca
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Dias de luto e de luta

Feriados, aniversários e despedidas em tempos de quarentena

Por Rafael Mattoso Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 14 Maio 2020, 14h34 - Publicado em 14 Maio 2020, 14h30
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  • Desta vez, a coluna é fruto de uma reflexão que se estendeu entre o domingo de páscoa, 12 de abril, e o domingo do dia das mães, 10 de maio. Pensava em escrever sobre alguns feriados e datas importantes desse período.

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    Quem sabe falar da Semana Santa, do Dia do Índio, Tiradentes, São Jorge, Dia do Trabalhador, ou qualquer outra data – que estranhamente acabaram parecendo todas iguais em tempos de isolamento social.

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    Quando pensava que tinha achado um norte, escrever sobre a importância do santo guerreiro, Jorge da Capadócia e seu simbolismo para os subúrbios cariocas, o avanço nos casos de covid-19 me paralisou. Nesse dia o estado do Rio de Janeiro teve o maior aumento do número de casos em 24h desde o início da pandemia, registrando 620 novos casos e chegando a 6.172 infectados, com ainda 206 mortes sendo investigadas.

    Respirei fundo e pedi ajuda para o amigo e escritor André Gabeh, que acaba de lançar o livro “Nunca Foi Sorte, Sempre Foi Macumba”. Claro que ele deu sua ajuda generosa e me devolveu imediatamente uma bela contribuição para me encorajar a seguir: “São  Jorge não  é mais só um santo cristão. Ao ser sincretizado com Ogum, Jorge perdeu o verniz etéreo dos inefáveis santos católicos e ganhou o peso telúrico e transcendente do Deus africano.

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    Jorge é filho de Zeus com tia Ivone, é filho de Iemanjá com o Bira do depósito de cerveja. É nosso semideus que ainda caminha entre os mortais e pelo qual nutrimos um afeto de fãs, uma admiração fraterna e o amor como é o dos filhos por pais heroicos. Jorge da Capadócia não é Ogum de Ifé. Mas é. No São Jorge de Quintino moram as duas energias e a força que nasceu do encontro delas”.

    Enquanto brigava com o texto e com minha própria dificuldade de concentração, a madrugada foi minguando e um novo dia começava a chegar, junto com o cansaço. Uma melodia surgiu na cabeça e cantarolei “acabou chorare, ficou tudo lindo de manhã cedinho…” Fazia apenas dez dias que Moraes Moreira havia nos deixado.

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    Quando estava indo deitar, dei uma última olhada no e-mail e percebi que acabava de receber um presente em forma de escrita, ofertado pelo professor Márcio Piñon, referência no estudo da geografia histórica dos subúrbios cariocas.

    São Jorge vai à Penha

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    São Jorge
    São Jorge (Alexandre Macieira/Riotur/Divulgação)

    Hoje, antes que os primeiros raios de sol se apresentassem, acordei com uma bateria de fogos de artifício, me aproximei da janela do quarto e fui olhar o que acontecia. Confesso que, por alguns instantes, pensei que tinha sido decretado o fim da quarentena. Mas, logo me dei conta de que era 23 de abril, dia de São Jorge, o Santo Guerreiro dos católicos e Ogum para as religiões afro-brasileiras.

    Lembrei da minha infância, nos idos dos anos de 1960, no bairro da Penha, Subúrbio da Leopoldina, onde o 23 de abril era sempre um dia marcante. Começava às cinco horas da manhã com a alvorada de fogos anunciando e salvando a chegada do Santo Guerreiro. Nesse dia, não ouvíamos os galos cantarem nos quintais com o raiar do dia. Parece que até eles silenciavam para ouvir a saudação a São Jorge.

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    Era comum ver pessoas saírem às ruas com alguma peça de roupa com as cores do santo. O vermelho carmim e o encarnado, como diziam os mais antigos, predominavam. À tarde, víamos o céu apinhado de balões. Balão pião, balão caixa, balão estrela, eram diversos os tipos e cores, mas todos carregavam, quase sem distinção, o símbolo do Santo Guerreiro, montado em seu cavalo branco, matando o dragão do mal, tal como se via, em noites claras, cunhado na lua cheia.

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    Hoje o dragão é um inimigo bem menor e silencioso em seu ataque, um vírus, que espera a lança da ciência descubra rapidamente como extirpá-lo.

    Com todo respeito ao outro Santo Guerreiro, São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro, a força de devoção de São Jorge na cidade é tão grande que o fez conquistar até feriado no seu reino.

    No Subúrbio da Penha, só havia um outro dia com tantos fogos de artifícios e festejos: era no primeiro domingo de outubro, quando tinha início a Festa da Penha. A festa, em homenagem à Nossa Senhora da Penha, padroeira do bairro que, do alto de sua colina, se impôs como monumento da cidade do Rio de Janeiro.

     Ainda hoje, para os que entram e saem da cidade por suas principais vias (Av. Brasil, Linhas Vermelha e Amarela) ou pelo Aeroporto Internacional Tom Jobim, o velho Galeão, o primeiro monumento que avistam é a Igreja da Penha.

    A Festa da Penha, no mês de outubro, mudava a vida do bairro, sobretudo nos finais de semana. Aos domingos, as missas eram de hora em hora, e vinham devotos de toda a cidade, assim como excursões de muitas partes do estado. Parte destes chegava para pagar as suas promessas em gratidão à santa milagrosa e subiam de joelhos os seus 365 degraus, um para cada dia do ano. Pela mesma escadaria que leva as pessoas até o alto da colina, onde se encontra a Igreja, fluía gente como rio, ao longo de todo o dia de domingo. Antes de conhecer o Maracanã, aos dez anos de idade, essa é a primeira cena de multidão que tenho em minha memória.

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    Na parte plana, chamada de Arraial da Penha, faziam-se piqueniques, como também montavam-se barracas de comidas, algumas típicas, portuguesas, baianas, mineiras etc. Muitas escolas de samba montavam também as suas barracas e no final do dia eram brindadas com a presença de sambistas e compositores que faziam rodas de samba e apresentavam suas composições. É sabido que, desde os tempos de Noel Rosa, Wilson Batista, Cartola, Paulo da Portela, Mano Décio, Nelson Cavaquinho e outros memoráveis sambistas, essas barracas faziam muito sucesso e preparavam, no ambiente sagrado da Penha, a outra festa, profana e igualmente memorável e icônica para a cidade, que é o Carnaval, antecipando os sambas e as modinhas que nele fariam sucesso e ficariam eternamente na boca do povo.

    Dia do choro

    (100% Suburbano/Arquivo pessoal)

    Outra comemoração muito relevante que ocorre conjuntamente com São Jorge é o Dia Nacional do Choro. Celebrado graças ao aniversário de nascimento de Alfredo da Rocha Viana, o mestre Pixinguinha. O gênio negro e suburbano que conquistou o mundo saindo de Piedade, e posteriormente de Ramos.

    Infelizmente este ano não tivemos o consagrado Trem do Choro, organizado pelo coletivo 100% Suburbano e que termina em uma grande roda na Praça ramos Figueira.

    Museu Afrodigita da Uerj apresenta exposição virtual para celebrar São Jorge

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    Em plena quarentena, o Departamento Cultural da Uerj continua resistindo através do seu atuante Museu Afrodigital Rio de Janeiro. A exposição “Na proteção e de ronda: a fé em São Jorge e a fé em Ogum” é resultado de uma mostra coletiva sobre a festa de São Jorge no Rio, com foco na última década, para marcar sua importância e presença nas ruas da cidade.

    As curadoras Ana Paula Alves Ribeiro e Maria Alice Rezende Gonçalves afirmam que neste momento onde o isolamento social e o combate à Covid-19 tiram muitas e muitos de nós da rua, temporariamente, e em um momento em que a ausência de aglomerações é recomendada, falar da festa, da religiosidade, da suspensão de alguns rituais e das cidades se faz necessário. “Não estamos necessariamente nelas, mas São Jorge e Ogum estão de ronda, estão em alerta, seguem cuidando. Nosso foco nesta exposição é a participação negra na festa, onde ressaltamos a importância dos espaços negros, como escolas de samba e terreiros, na cidade do Rio, e sua região metropolitana, assim como pensar as fronteiras entre catolicismo popular e cultura afro-brasileira, sobre os diálogos e afastamentos entre São Jorge e o orixá Ogum.”

    Para acompanhar o resultado deste belo trabalho do Museu Afrodigital, acesse https://www.museuafrorio.uerj.br/?work=fe-em-sao-jorge

    De Lima Barreto a Aldir Blanc

    No mês de maio, a quarentena continuou a afligir, produzindo um turbilhão de emoções. Nesse contexto os deuses levaram o genial Aldir Blanc, no dia 4, e apenas cinco dias depois concederam o início de mais um ano de vida ao seu parceiro, na composição Baião da Muda, o mestre Nei Lopes.

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    O mesmo Nei Lopes que viu nascer, há 41 anos, o Clube do Samba na casa do amigo João Nogueira, na rua José Veríssimo no Méier, em pleno sábado do dia 5 de maio de 1979.

    Méier que completou, no dia 13, seu aniversário simbólico de 131 anos, contados a partir da abertura da sua estação de trem. A parada de passageiros de onde o também aniversariante desse dia, Lima Barreto, costumava passar no retorno a sua residência enquanto morou no bairro de Todos os Santos.

    Para rememorar tantas histórias, organizamos uma live no canal Papo de Subúrbio, do Youtube, programada para o dia 14 de maio às 20h. São convidados o músico Cláudio Jorge, o cantor Didu Nogueira, o produtor cultural Pedro Rajão e a historiadora Rachel Lima, além da professora Elaine Brito, do poeta Marcelo Bizar e outros participantes.

    (131 anos do Méier/Divulgação)

    Este texto foi feito em parceria com o escritor André Gabeh e o professor Márcio Piñon de Oliveira, além da revisão da jornalista Sandra Crespo.

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