Suspeita de estupro em “A Fazenda” e o desrespeito ao corpo das mulheres
Acusação em reality show explicita, mais uma vez, a dificuldade enfrentada pelas mulheres em terem seus corpos respeitados
Foi o assunto do final de semana nas redes sociais: a acusação de que um integrante do reality show “A Fazenda”, da TV Record, teria feito sexo com uma outra participante. O suspeito foi expulso do programa pela direção da emissora. Em sua rede social, o suposto agressor se defendeu e disse esperar “resolver a situação da forma correta”. Tenha ou não havido o estupro, independente do que a Justiça irá apurar, o caso chama atenção pela combinação de abuso de álcool e violência contra mulheres. A frequência é maior que se supõe: segundo estudo americano de 2011, 50% dos casos de estupro envolvem consumo de álcool pelo agressor, pela vítima ou por ambos.
De acordo com o 2º Segundo Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), que ouviu 4.283 indivíduos, entre homens e mulheres, em 2012 e publicado em 2019, a estimativa é que 2,6% da população brasileira já passou por um episódio de estupro. Ou seja: o perturbador número de 6 milhões de pessoas. Entre os indivíduos com diagnóstico para transtorno por uso de álcool a prevalência aumenta: 6% relataram ser vítimas de estupro, bem como 3,3% daqueles que disseram beber pesado episódico (definido como a ingestão de quatro doses de bebida alcóolica para mulheres e cinco doses para homens em um intervalo de duas horas). O estudo conclui que, entre as mulheres, o excesso de consumo de bebida alcoólica é um fator que aumenta em quatro vezes a probabilidade de estupro.
A associação de bebida alcoólica com diversão causa estragos desde cedo. Segundo pesquisa americana, cerca de 50% das estudantes estupradas no país afirmam que estavam consumindo álcool pouco antes de o crime acontecer. É fundamental ressaltar que a culpa nunca deve ser atribuída à vítima, como a sociedade machista tende a fazer. Quem bebe em excesso compromete a capacidade de julgamento e fica mais exposto a atitudes violentas. Justificar um estupro a uma “saia curta”, “um top justo” ou porque uma mulher “bebeu muito”, é mais que cruel: é perverso.
Independente da confirmação da suspeita, é constrangedor que o caso ocorra em um programa de televisão. É inevitável considerar o quanto o reality se retroalimenta da repercussão do caso, numa espécie de dramaturgia às avessas, jogando com a vida de pessoas reais e não de personagens.
E foi justamente assim, tomando o caminho oposto – transformando em ficção o próprio estupro depois de ser dopada – que a inglesa Michaela Coel achou o caminho da sua redenção e criou uma das melhores séries do ano. “I May Destroy You” (HBO) ganhou, na semana passada, o prêmio Emmy de melhor roteiro. No discurso de agradecimento, Michaela dedicou seu prêmio a todas as pessoas que sobreviveram a abusos sexuais.
“Quando uma mulher diz não, é não. Quando uma mulher alcoolizada diz sim, também é não”, disse Adriane Galisteu, apresentadora do programa. O álcool não é desculpa para qualquer violência sexual. De acordo com a legislação brasileira, fazer sexo com mulher embriagada é interpretado como estupro de vulnerável, ou seja, crime.
Fica o desejo que ao menos a grande audiência do programa gere discussão e conscientização acerca dos riscos do consumo excessivo de álcool e do inegociável respeito ao corpo das mulheres.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.