A pandemia de bebida alcoólica
Dados indicam aumento da circulação e do consumo de álcool no Brasil no último ano
À medida em que as vacinas vão chegando aos braços dos brasileiros e que passamos a enxergar uma luz no fim do túnel ao isolamento dos últimos meses, é possível começarmos a especular sobre quais serão os legados que a pandemia deixará na saúde física e mental da população brasileira. Mudanças de paradigma como o home office e a valorização da casa são concretas bem como, infelizmente, o aumento de casos de ansiedade e depressão.
Outra vertente que chama a atenção é o aumento significativo de produção e de consumo de bebidas alcoólicas no último ano. Dados do IBGE divulgados no começo de junho afirmam que a produção de bebida alcoólica cresceu 17,6% nos primeiros quatro meses de 2021, em comparação com o mesmo período de 2020, portanto, antes da entrada avassaladora do coronavírus em nossas vidas. Para quem está no front no atendimento aos pacientes, a impressão é que quem já tinha um consumo desequilibrado de álcool antes da pandemia se aproximou da dependência nos últimos meses. Os que já eram dependentes e estavam em abstinência recaíram. Os números dão concretude a essa percepção: de acordo com o Global Drug Survey, publicado este ano, o Brasil ocupa o 10º lugar em número de ocasiões em que as pessoas ficaram alcoolizadas no último ano – acima da média global e bem superior à posição no ranking do ano passado (24º lugar).
A facilidade e comodidade do delivery é outra herança deste nosso tempo. Apenas o aplicativo Zé Delivery, braço de entregas da própria Ambev, fez nada menos que 27 milhões de entregas de bebida em 2020. Os dependentes de álcool, que bebiam na rua com amigos ou no happy hour, viram-se obrigados a estocar bebida em casa.
Não é difícil entender a ascensão deste mercado. O álcool é um aparente redutor do estresse – e quem não se sentiu estressado nos últimos meses, com tantas incertezas sobre o futuro, com o isolamento social, o convívio forçado em casa, a saudade dos amigos e do “velho normal”? Só que, na verdade, o álcool é um péssimo ansiolítico. Ele estimula o centro de recompensa cerebral, liberando a dopamina e, com isso, atingindo uma sensação de prazer. No caso específico do estresse, o álcool também libera um neurotransmissor chamado gaba e reduz a neurotransmissão glutamato. Mas no uso continuado do álcool, esse processo se inverte: a neurotransmissão gaba fica menor e a neurotransmissão glutamato fica maior. O resultado é um aumento da sensação de estresse e da ansiedade. Para curar-se do mal, toma-se o veneno.
De engano semelhante vive o cigarro. Equivocadamente associado a momentos de relaxamento – embora saiba-se seu danoso impacto no sistema respiratório e cardiovascular –, a venda de tabaco voltou a crescer no Brasil em 2020, depois de pesquisas realizadas em 2019 apontarem queda no percentual de indivíduos que fumam. Segundo a Fiocruz, o consumo de cigarro no Brasil aumentou em 34%. O crescimento foi atribuído, principalmente, à pandemia, quadros de depressão, ansiedade e insônia.
A tese de que o isolamento social poderia acabar sendo benéfico para alguns alcoolistas e fumantes, tendo em vista a ausência de estímulos condicionados externos – a festa, os amigos e toda a entourage que o consumo condiciona – não se concretizou. Agora, 16 meses depois do início da pandemia, algumas pessoas começam a se dar conta da “herança maldita”. E, o mais importante: estão buscando ajuda.
Segundo o Alcoólicos Anônimos, a busca por ajuda no AA triplicou no último ano, atingindo a marca de 100 pedidos de apoio por dia. De acordo com o AA, a presença de mulheres nas reuniões virtuais saltou de 5% para 41%, representado quase a metade do público em um dos momentos de maior procura na história do AA. A escalada do consumo de bebidas alcoólicas por mulheres já havia sido percebida em 2019, na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) feita pelo IBGE: a proporção das mulheres que bebiam álcool uma vez ou mais por semana crescera 4,1% em seis anos (de 2013 para 2019).
O estrago que a bebida alcoólica causa na saúde do brasileiro já era perceptível bem antes de o coronavírus surgir. De acordo com estudo da Organização Pan-Americana da Saúde e da OMS, publicado em abril deste ano na renomada revista científica Addiction, o consumo de álcool foi a única responsável por cerca de 85 000 mortes por ano de 2013 a 2015 nas Américas, sendo que o Brasil responde por 25% dos casos. Chama a atenção que a maioria destas mortes (64,9%) tenha ocorrido entre pessoas com menos de 60 anos. Estamos, portanto, perdendo nossos jovens para o álcool – uma das drogas mais nocivas e, no entanto, mais disseminadas e toleradas na sociedade. Se já estávamos fartos de evidências cabais do uso nocivo da bebida alcoólica antes da pandemia, deveríamos agora, finalmente, enfrentar seu consumo desenfreado como uma questão de saúde pública.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.