Maconha medicinal ou canabidiol medicinal: você defende a causa certa?
A sociedade não pode se deixar levar pelo embaçamento construído para atender interesses comerciais
Quando se fala em legalização das drogas, há que se mencionar as múltiplas forças que atuam nos bastidores. De um lado, um emaranhado entre o oportunismo e interesse. De outro, grupos com intenções e necessidades coerentes e legítimas. A confusão é conveniente para alguns. Graças a ela, as pessoas são mais superficiais na expressão de suas supostas “opiniões”, por vezes se engajando em discursos “pró” ou “contra” algo, sobre os quais estão pouco esclarecidos para quê e por quem estão lutando, de fato. Assim, uma discussão que exige flexibilidade para a análise de cada aspecto torna-se uma grande marcha de “times” oponentes.
Talvez a expressão “luta contra as drogas” seja percebida como algo tão opressor que o instinto, imediatamente, nos conduz à ideia de que é “proibido proibir”, sem separar o joio do trigo. Então, minha sugestão para a leitura deste artigo é que coloquemos nossas armas no chão e, por alguns minutos, pensemos que “não há lado”: comungamos do desejo de mais saúde física e mental para todos.
O desejo de anestesiar-se frente à realidade da vida existe desde os primórdios da Humanidade: as formas de busca de prazer e/ou alívio das emoções desconfortáveis só vão mudando de modalidade, de tempos em tempos. Isso é natural e com um pouco mais de compaixão conosco e sem julgamento moral, podemos concordar que não é fácil viver, seja pelo estresse do cotidiano, pela desestruturação familiar ou por problemas de saúde. Inúmeras vezes não queremos “estar aqui”, vivendo o tal presente – que hoje tanto se valoriza. Se desconectar da realidade, seja para um hiato na dor, alívio do desprazer, ou mera busca de experiências que parecem agradáveis, são desejos naturais. O que precisamos saber é se os adultos desejam que os jovens paguem os possíveis preços altos destas escolhas.
A discussão acalorada sobre a legalização da maconha tem como pauta a liberdade do indivíduo de decidir sobre sua própria vida, acreditando que o poder do Estado não pode interferir em sua autonomia. O problema está exatamente aí. O que para alguns é visto como liberdade e autonomia, é percebido por muitos especialistas em saúde como uma força de paralisação, em consequência do efeito letárgico da maconha. A isso, soma-se a falsa percepção de baixo risco da maconha, já que seu uso não está relacionado diretamente à arruaças, homicídios ou situações que ocupam a primeira pagina dos jornais.
O que poucos acreditam, pela conveniência psíquica da ignorância – já que isso é frequentemente alertado – é que uma droga que carrega a fama de ser “mais leve”, seja capaz de causar “síndrome amotivacional”, ou seja, uma “falta de apetite” pela vida, com menor produtividade. O processo é tão sutil e silencioso, que o individuo começa a transformar-se sem perceber, chegando a se descrever, depois de um tempo de uso, com características surgidas a partir do uso da maconha. O uso de maconha aumenta em oito vezes a chance uma pessoa ter um surto psicótico, chegando a um quadro de comprometimento do futuro produtivo do usuário. Portanto, insistir que a maconha é uma droga leve é uma questão de perspectiva.
A violência em decorrência do tráfico de drogas é um forte argumento trazido pelos defensores da legalização. As experiências do Uruguai e de alguns estado americanos, por exemplo, mostram um caminho curioso: drogas legalizadas são taxadas pelo governo, tem seu preço aumentado e a quantidade de venda controlada. O que a liderança do tráfico faz então? Cria o mercado paralelo para os consumidores de alta escala. Afinal de contas, traficantes não viram trabalhadores formais que lutarão por um ou dois salários mínimos por mês. A transgressão e a maldade humana continuarão existindo. A criatividade para vender drogas, criar novas formas de golpes por WhatsApp, cartão de crédito ou mesmo sequestros e assaltos com violência: nada disso deixará de existir só porque a maconha estaria legalizada.
A preocupação dos especialistas não é com aquele nosso amigo que funciona bem uma vida inteira usando maconha apenas na hora de dormir ou com aquele outro que dá tragos em festinhas. Nossa preocupação é de saúde pública.
Quais as drogas mais consumidas no mundo? As lícitas: tabaco e álcool. São elas a porta de entrada para o uso de drogas ilícitas. E por que? Pelo simples fato de que as famílias e a sociedade, direta ou indiretamente, assumem ser aceitável fumar e beber. Em casa, nas ruas, nas festas. Ou seja, quanto mais disponível e aceitável socialmente é uma substância, mais chances de ela circular e aumentar o número de dependentes pelo simples fato de tornar-se lícita. Hoje a maconha é a droga ilícita mais consumida do mundo. Imagine se for legalizada.
Inúmeros adolescentes questionam os pais sobre a diferença entre a cerveja do adulto e a maconha do jovem – e a hipocrisia que há nisso. Eles tem razão sobre o fato de não haver tanta diferença. A verdadeira diferença está no fato de que este ano, por exemplo, quatro milhões de pessoas morreram por consequências do uso de álcool e tabaco e que a mortes por uso de substâncias ilícitas, por ano, circulam em torno de 600 mil. O fato de não termos força cultural e financeira para controlar o uso do álcool não significa que precisamos falhar novamente e repetir um caminho de aumento progressivo de número de dependentes em maconha, expondo os jovens à inatividade, desconexão com a realidade e interferências acadêmicas, familiares e afetivas.
No caso do tabaco, o mundo se uniu em campanhas de redução de consumo. No Brasil, houve uma diminuição de 30% de usuários. Portanto, é importante estar atento à como a indústria do tabaco está se organizando para resgatar a gigantesca lucratividade perdida. Se por um lado, o consumo de cigarro diminuiu, por outro explodiu o acesso ao novo produto vaper, que pode ser consumido tanto com tabaco quanto com maconha, sem chamar a atenção dos adultos, visto que não exala o cheiro característico. Portanto, por trás do movimento de legalização de drogas está uma força filosófica sobre a liberdade humana ou já existe uma estratégia industrial para faturar em cima das nossas vulnerabilidades?
O uso medicinal da maconha é outro ponto de grande confusão proposital que deixa lacunas interpretativas. Não há evidência científica de que maconha fumada de forma recreativa resulte em qualquer benefício para a saúde. O que existe é o uso oral e nasal do canabidiol extraído da maconha. O “barato” sentido ao se consumir maconha vem da substância THC, o mesmo responsável por muitas das consequências negativas da maconha. THC e canabidiol tem forças opostas em nosso cérebro. No Mal de Parkinson já há evidência de que o canabidiol oral ocasiona uma diminuição dos sintomas típicos da doença, traz melhora na qualidade de vida e do sono; no autismo infantil também já existem evidências semelhantes e o mesmo pode ser dito nos cuidados paliativos em pacientes oncológicos, de esclerose múltipla e Alzheimer. Isso tudo é uma ótima notícia, sem dúvida. Mas não se trata de maconha, e sim de canabidiol oral.
Então não se engane: as evidências científicas tão valorizadas diante da epidemia do coranavírus, precisam também serem levadas a sério na questão do uso da maconha. A sociedade não pode se deixar levar pelo embaçamento construído para atender interesses comerciais.
O preço a ser pago é a saúde física e a integridade psíquica de gerações de jovens, as atuais e as futuras.
Elizabeth Carneiro é psicóloga supervisora do Setor de Dependência Química e Outros Transtornos do Impulso da Santa Casa do Rio, especialista em Psicoterapia Breve e Terapia Familiar Sistêmica, diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química e treinadora oficial pela Universidade do Novo México em Entrevista Motivacional.