40 anos depois: o que a epidemia de AIDS ensina à pandemia de Covid-19?
Nos anos 80, desconhecimento sobre o vírus HIV assustou o mundo como o coronavírus assusta hoje
Parece que foi ontem. No começo dos anos 80, um vírus, sobre o qual pouco se sabia era capaz de matar rápido. Com o passar dos meses, a ciência – sempre ela! – começou a elucidar a doença e descobriu que se tratava de um vírus sexualmente transmissível. Diante da alta incidência entre homossexuais, logo recebeu o rótulo cruel de “câncer gay”. Quarenta anos depois, o vírus HIV não é mais aquele fantasma que assombrou as primeiras gerações. Ele está bem mapeado: sabe-se como contraí-lo e, portanto, como prevenir-se dele.
Traçando um paralelo, neste momento, o mundo tenta mapear a lógica de um outro vírus: o coronavírus, a doença que ele impõe – a Covid-19 –, e suas variantes que surgem cada vez com mais frequência. E o que a epidemia de AIDS ensina à pandemia de Covid-19?
Antes de mais nada, é preciso que se reconheça a força da ciência. Sua eficiência em identificar, mapear e traçar estratégias de prevenção de doenças é um mérito dos cientistas e profissionais de saúde, claro, mas também um motivo de orgulho para aquilo que nos une como espécie: a capacidade de raciocinar, criar e achar soluções para o bem do coletivo. É assim desde sempre, foi assim em 1980, está se repetindo agora e assim permanecerá.
O segundo ponto a ser destacado é a ordem em que os fatos se dão. Primeiro há o pânico. Depois o entendimento da doença. A terceira fase é o seu controle. Na Covid-19, um grupo de vacinas foi desenvolvida e aplicada em tempo recorde e outra série de imunizantes estão sendo pesquisados e, se tiverem sua eficácia comprovada, serão lançados em breve. No caso do HIV, infelizmente ainda não há uma vacina, embora exista uma série de medicamentos que permite excelente qualidade de vida aos contaminados.
Desde o surgimento da pandemia, evita-se contato com qualquer pessoa doente de Covid-19, em razão do alto grau de transmissibilidade do vírus. Movidos por esse temor, assistimos a uma onda de xenofobia, de fechamento de fronteiras e suspensão de voos internacionais, diante das suspeitas de a doença ter surgido neste ou naquele país ou estar mais disseminada em uma ou outra determinada população.
Imagine então quem passou a vida sob esse estigma, porém equivocado, como os contaminados por HIV?! Embora hoje se saiba há muito tempo que não se contrai HIV por estar no mesmo ambiente, tocar na outra pessoa ou compartilhar de seu garfo ou toalha, estudo do UNAIDS (Programa das Nações Unidas sobre HIV/AIDS) com quase 2 mil soropositivos mostra que 64% já foram vítima de algum tipo de preconceito: 46% por meio de comentários de amigos, vizinhos ou até familiares; 25% em forma de assédio verbal; 20% foram recusados em vagas de emprego ou perderam a fonte de renda. Especificamente no Recife, 34,3% das pessoas que convivem com o vírus evitaram iniciar tratamento por não se sentirem preparadas.
O estigma ronda, lamentavelmente, até mesmo aqueles que deveriam estar mais preparados para lidar com este público: 15% dos entrevistados atestam ter sido alvo de preconceito em serviços de saúde em sete capitais brasileiras, onde a pesquisa foi realizada, em 2019. O preconceito faz com que 81% dos entrevistados afirmem que ainda é difícil falar abertamente sobre sua sorologia com outras pessoas.
A AIDS e a Covid-19 tem mais uma lamentável coincidência: nos levaram muitos talentos. A primeira vitimou Cazuza, Renato Russo, Lauro Corona, Caio Fernando Abreu. Já a segunda nos tirou Paulo Gustavo, Nicette Bruno, Tarcísio Meira, Daniel Azulay, Aldir Blanc. Um triste panteão de orgulhos nacionais que ainda poderiam estar entre nós se não fossem os dois vírus.
Para que isso não siga acontecendo, não podemos relaxar para além do que dizem as orientações de prevenção. Contra o coronavírus estamos em plena batalha. Contra o HIV, a guerra também não está vencida. De acordo com dados divulgados pelo Ministério da Saúde na semana passada, mais de 50% dos novos casos são registrados entre os jovens de 20 a 34 anos. Segundo o sociólogo Alexandre Grangeiro, pesquisador do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, o número de jovens infectados pelo HIV não para de aumentar e o pior da epidemia de AIDS ainda pode estar por vir. Vírus estão sempre à espreita, oportunistas, esperando uma janela para se instalarem. Prevenção, bom senso e responsabilidade são o caminho.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.