Lições dos abusos e assédios sexuais nas escolas do Rio
Sequência de denúncias fazem refletir sobre os jovens que estamos criando e as escolas que queremos para nossos filhos
Uma sequência de denúncias de assédio e de abuso sexual destinadas aos professores e colegas de alguns dos colégios de maior prestígio do Rio de Janeiro tem chocado os pais e a sociedade. O movimento Exposed teve seu início no Twitter, um espaço que pode ser utilizado com anonimato para denunciar, compartilhar e clamar por consequências a atos que as meninas consideram assédio, abuso, ou simplesmente geradores de desconforto na relação com o masculino.
O fervor que acometeu o Rio na última semana foi tão grande que ganhou as páginas dos jornais e revistas. Também foram abertos grupos de Whatsapp para discussão, desnudando o véu que encobre o assunto desde os primórdios da vida escolar. Nos grupos, que incluíam meninas de todos os colégios da cidade, foram postadas denúncias nominais a professores e colegas do sexo masculino, que acabaram gerando uma lista identificada com nomes de escolas, professores e disciplinas lecionadas nas instituições de ensino. Além disso, também circulou uma lista com os nomes de 350 meninos que elas notificaram como abusivos, “perigosos” de se relacionar.
Na sequência, tocadas pela iniciativa deflagrada pelo movimento feminino descrito acima, meninas que hoje são universitárias e no passado já haviam tentado fazer tais denúncias formais em seus colégios de ensino médio, se sentiram encorajadas a botar a cara na rua e provar que as denúncias contra os mesmos professores já foram feitas anos atrás. Hoje fora da escola, elas seguiram com a vida e já estavam resignadas de que os colégios preferiram fingir que nada acontecera.
Instituições de ensino frequentemente preferem não expor “a banda podre” que coloca em xeque sua reputação. Por meio de e-mails antigos, ex-alunas provaram suas tentativas frustradas de denúncias há anos, tendo obtido apenas a promessa de que “o colégio vai averiguar e tomar as providências cabíveis”.
Para o pleno entendimento do fenômeno social que foi inaugurado com esta profusão acalorada de denúncias, informações, emoções e também, por vezes, distorções da verdade, pondo em pauta a imperatividade de avaliação da fidedignidade de todas as informações que circulam nesta catarse coletiva, vou tentar separar o joio do trigo.
Antes de mais nada, é necessário separar “os acusados” que possuem características muito distintas em termos de intenções e comportamentos, para viabilizar a busca de reais atitudes de justiça: os meninos colegas de classe e os professores.
Primeiro, vamos aos colegas de classe. Meninos sempre se valeram das meninas para (tentar) contar vantagem, uma forma de afirmar sua masculinidade. Entretanto, parece que nossos meninos, para serem notados como “populares” no ambiente escolar precisam se portar de forma desrespeitosa e continuar a objetificação da mulher.
A avaliação pejorativa no ambiente escolar sempre existiu. O tempo passa e os processos de afirmação e pertencimento ao grupo só mudam de modus operandi. Não que não fossem nocivas no passado, mas o que há alguns anos era mera fofoca da hora do recreio, ou uma expressão entre amigos como “que gata” ou até mesmo “que baranga” dito entre os dentes, ou mesmo “já peguei aquela”, ao modo deles, hoje tem efeito multiplicador danoso. A diferença essencial agora é o uso da tecnologia e da internet como amplificadores. O WhatsApp dá velocidade às informações antes que elas possam se provar verídicas ou não e são um convite às famosas fake news.
Assim, os jovens criam e disseminam uma série de constrangimentos, como rankings das meninas mais bonitas às mais feias, uma forma clara de bullying, até criação de “legendas” detalhando o que já fizeram com cada uma, atrelando-as uma pontuação para si próprios. Ou seja, quanto mais a menina está no topo da lista, e ele conseguiu atos mais “íntimos” com ela, o valor dele cresce” entre os próprios meninos. As legendas variam de “me mamou” ou “dedei” a “interesseira” ou “o colégio inteiro já comeu”, dentre outras coisas ainda mais pesadas, acredite.
No contra ataque, as meninas criaram sua própria lista, categorizando os rapazes: de “assediador verbal” e “relacionamento abusivo” a alertas como “espalhou nudes” ou “é adulto e fica com meninas muito jovens”. Uma realidade nova que mais se parece com guerra entre os sexos do que uma busca de encontros afetivos, primeiras emoções de conexão, descoberta cautelosa da sexualidade de ambos e todos os despertares saudáveis da juventude.
Quem convive com jovens, sabe que as denúncias que agora vem à tona são uma panela de pressão que estava prestes a explodir. A geração que tem entre 13 e 17 anos hoje tem diversas peculiaridades: não apenas consome bebida alcoólica apesar da menor idade, como o faz em excesso; exerce a sexualidade de forma cada vez mais precoce; se ressentem de sentido na vida e, querem a satisfação imediata e como consequência frequente, deprimem, tentam suicídio e por vezes chegam a se automutilar para lidar com sentimentos como exclusão, desmoralização e invalidação de suas reais necessidades. Series juvenis como “Elite”, “Euphoria” e “13 Reasons Why” confirmam tais constatações.
Gostaria de destacar a presença de inúmeros meninos que não compactuam de tal comportamento. E pelo contrário, já são fruto de uma educação compassiva, alguém que não é educado para provar sua masculinidade através de distorções que o ser humano cria para salvaguardar sua autoestima. Eles são capazes de ficar numa festa até o fim para não deixar seus amigos “machões” transarem sem consentimento com uma menina que está alcoolizada dormindo num sofá, por exemplo. Acreditem, existem muitos assim: afetivos, fiéis a certos princípios de zelo ao próximo e que não apoiariam qualquer ato de subjugação vindo do sexo masculino ou feminino. Por isso temos que ter o cuidado de não rotularmos toda uma geração de meninos como seres insensíveis, covardes, machistas. Eles não são e nem deveriam se transformar numa lista a ser temida.
Existem também meninas, infelizmente, que no calor do movimento, e também por suas fragilidades psíquicas ou pela necessidade de pertencer, que incluem injustamente meninos absolutamente adequados por um recorte deturpado, uma interpretação equivocada ou simplesmente fazem uma invenção maldosa como expressão de raivas contidas de sua própria história. A consequência disso é o risco de, no início do percurso estudantil, meninos que jamais ultrapassaram a linha tênue do que chamamos de saudável ou respeitoso, ficarem rotulados como “assediadores”. Há pessoas que carregam estigmas injustos para sempre, mudando assim o curso de uma história de vida de forma violenta. Um outro risco é a demonização da figura masculina, podendo gerar impactos sobre a forma de aproximação das mulheres com os homens.
A pergunta que fica para nós, pais, é: como educar meninos e meninas para a construção de seres humanos que se conectem pelos valores que possuem, em que a empatia seja o óbvio e as relações abusivas, de qualquer origem, sejam rejeitadas? Não podemos esquecer que quem educa esses meninos são mulheres também. Que movimento paradoxal está ocorrendo na nossa sociedade? Homens e mulheres ocupando, progressivamente, lugares tão semelhantes em casa e no trabalho; lutas de anos para a busca da igualdade e a agilidade da informação parecem estar gerando um certo retrocesso nas relações entre os sexos.
Você tem certeza sobre o jovem que está criando em casa? É hora de conversar com seu filho para que ele não se torne aquele que propõe o abuso (ou fique conivente diante dele).
Se o seu filho faz parte do grupo que está hierarquizando pessoas pela aparência e fazendo bullying com quem é julgado como menos perfeito pela beleza, qual a conexão que ele é capaz de criar com outro ser humano? Talvez ele responda que estava de “zoação”. Mas o limite da “zoação” é o dano psicológico nos outros. E isso esta geração está conseguindo como nenhuma outra.
Muitos jovens sofrem abusos verbais, sexuais, morais, dentro e fora de casa. O fenômeno iniciado pelo Exposed no Twitter é uma bela oportunidade para falarmos de educação, não apenas na escola, mas no que nós adultos estamos negligenciando, seja por ausência na vida dos filhos, seja por não querer enxergar a maldade que existe dentro das nossas próprias famílias. Estamos educando uma geração que claramente usa o ambiente virtual para se comportar diferente do que se mostra na mesa de jantar, na frente dos pais.
A segunda parte da questão se refere aos professores acusados de abusos. Diversas alunas utilizaram também o Twitter ou grupos de WhatsApp para denunciar casos de assédio sexual por parte dos professores, como pedidos de “beijinho” a meninas de 15 anos como condição para ir ao banheiro, afagos demorados no cabelo de meninas de 12 anos, carícias e abraços, e até casos de meninas que tiveram seios, coxas e as nádegas tocados pelos professores.
Aproveitar-se da posição hierárquica e de admiração ou poder para obtenção de vantagens de intimidade é crime. Conheço muitas das meninas denunciantes em muitos colégios, fui procurada essa semana por uma legião de mães em estado de angústia e questionamento. Nós mães já passamos também por isso, no papel de vítimas, num passado em que pouco se falava sobre assuntos que incluíam a sexualidade. O medo de não acreditarem, serem cínicos preferindo dizer que o professor era “brincalhão” ou de ser percebida como aquela que deu espaço para tal gesto era o que nos impedia de gritar alto os absurdos encobertos pelas escolas.
Se muitas famílias lidam com abusadores dentro de casa até hoje (pais, padrastos, padrinhos, primos, amigos dos pais) varrendo a sujeira para debaixo do tapete, porque instituições tradicionais iam querer falar abertamente? O que não é confirmado, nunca existiu. Esta parece ser a estratégia de proteção da instituição, que não inclui em nenhum momento a relevância de preservação do aluno. Um discurso subliminar velado é “quem não estiver satisfeito, a porta da rua é a serventia da casa”, afinal temos uma lista imensa de pessoas ávidas por entrar em instituições tão respeitadas.
É alentador ver a nova união feminina em torno de denúncias a atos repugnantes. Elas comprovam o quanto movimentos como #MeToo impactaram as novas gerações, que não toleram mais certas atitudes que tinham a condescendência das gerações anteriores. É a concretização do fim do medo de ser julgada moralmente ou de sofrer represálias. No entanto, é preciso considerar o perigo que uma acusação sem provas pode causar na vida dos incriminados. Todo este movimento estabelece uma intrincada dinâmica entre verdades e mentiras. A ideia não é desencorajar denúncias, pelo contrário, mas que elas sejam cada vez mais responsáveis.
Seja como for, cabe às escolas a obrigação de apurar e, se adequado, punir o assediador. A hipocrisia dos colégios precisa acabar. Uma escola que demite um professor por assédio deveria ser mais bem vista em nossa sociedade, ao invés de lutarem para serem percebidas como exemplo de correção e bons costumes. Correção não é ser puro, isento de dificuldades, mas sim encarar de frente toda e qualquer realidade que nos seja apresentada para uma avaliação justa.
Sigam em frente, jovens! Preparamos vocês e acreditamos no quanto podem mudar o curso da sua e das próximas gerações. Meninos e meninas corajosos para estar ao lado da justiça, capazes de aceitar uns aos outros nas suas diferenças, de se conectar pela empatia, compaixão, generosidade e tudo de abundante que possam dar e receber da vida.
Elizabeth Carneiro é psicóloga supervisora do Setor de Dependência Química e Outros Transtornos do Impulso da Santa Casa do Rio, especialista em Psicoterapia Breve e Terapia Familiar Sistêmica, diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química e treinadora oficial pela Universidade do Novo México em Entrevista Motivacional.