Druk: excelente filme, péssimo exemplo
Personagens frustrados buscam ânimo no álcool. Na vida real, quem escolhe esse caminho raramente tem um final feliz
E se o ser humano tivesse uma defasagem natural de álcool no sangue e uma pequena dose – 0,05%, para ser exata – fosse capaz de trazer benefícios como maior sagacidade e inspiração? A hipótese do psicoterapeuta norueguês Finn Skarderud é a premissa de “Druk – Mais uma rodada”, produção dinamarquesa que concorre ao Oscar em duas categorias: melhor produção internacional e melhor diretor (em cartaz no Now, iTunes/Apple TV, Google Play e YouTube Fimes).
No filme, quatro amigos na faixa dos 50 anos, todos com vidas afetivas e profissionais frustradas, resolvem testar a teoria e passam a consumir bebida alcóolica para dar uma “balanceada” no dia. A princípio, a experiência surte bons resultados. Professores na mesma escola, o consumo de álcool derruba barreiras com os alunos – todos também adeptos do uso de bebida alcóolica em grandes quantidades – e amplia os laços entre eles, aumentando suas capacidades de comunicação. Se nos anos 90 o ponto de contato dos alunos com o professor interpretado por Robin Williams em “Sociedade dos Poetas Mortos” era a literatura, 30 anos depois a aproximação vem pela bebedeira.
Diante dos bons frutos e com o corpo ganhando tolerância ao álcool, a tentação dos personagens é aumentar a dose para potencializar ainda mais a experiência: conseguir uma maior aproximação com as pessoas e diluir o entrave em falar das próprias dificuldades. E é aí que a bebida alcoólica mostra a sua faceta cruel – aquela que milhares de alcoolistas, infelizmente, conhecem tão bem.
À medida em que bebem mais e mais, o que vem à tona não é saudável: surgem a agressividade, a fragilidade e a dependência. O álcool atiça os fantasmas que habitam dentro de cada um dos personagens, trazendo as fissuras criadas nos círculos familiar e profissional. E a razão para isso é simples: a bebida alcoólica não “cura” nada. Ao contrário.
O álcool é, isso sim, um instrumento de liberação da autocensura que, invariavelmente, induz ao erro porque o uso desse dispositivo impede que se encontrem formas mais eficientes e saudáveis de comunicação. Além isso, com o passar do tempo, cria-se uma tendência de repetição do artifício, sempre em doses maiores e usando o álcool como desculpa em todas as situações. Em última instância, bebe-se porque se está feliz ou bebe-se porque se está triste. Quando muita gente se dá conta dessa realidade, é tarde demais – a trajetória dos próprios personagens ilustra isso (sem spoilers!).
Apesar de o longa-metragem soar como um libelo ao consumo de álcool, o diretor Thomas Vinterberg afirma que teve o cuidado de não ferir as famílias que são destruídas pela bebida. “O filme é uma pesquisa sobre esses quatro homens e as formas como bebem, vivem, se perdem e se reencontram”, se defendeu Vinterberg em recente entrevista ao jornal “O Globo”. Corajoso por ser politicamente incorreto (como poucas vezes se vê hoje em dia no cinema), o filme se posiciona no fio da navalha: é um excelente entretenimento sem moralismo, mas que, por tabela, flerta com uma ode perigosa com pretensos benefícios do álcool.
Para nós, que não vivemos no terreno da ficção, é importante reforçar que existem outros métodos para lidar com inibição ou frustração, mais eficientes que o álcool e bem menos danosos à saúde mental e física, como a psicoterapia. Na vida real, pessoas que buscam o caminho escolhido pelos personagens de “Druk” raramente encontram o Happy End no final.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.