CPI da Covid: a perturbadora verdade que o relatório final não vai mostrar
Assistindo aos nossos representantes no Senado, comprovamos que ainda somos uma sociedade misógina, homofóbica e racista
No ano em que as reprises dominaram a grade das emissoras de televisão, a atenção dos brasileiros se voltou para uma atração inédita: a CPI da Covid. No ar há quase seis meses, a transmissão das sabatinas dos senadores a algumas das mais controversas figuras da República despertou interesse popular, foi assunto de rodas de conversas e bateu recorde de Ibope não apenas nas televisões, mas na transmissão via YouTube do Senado, com mais de 100 mil pessoas conectadas, assistindo em tempo real. Para um povo sobre o qual se dizia reiteradamente que não gostava de política, é um feito e tanto.
Talvez pela extensa duração, talvez pelo nível de tensão que atingiu em certos momentos, a CPI da Covid acabou trazendo à tona – sem querer – algumas características da nossa sociedade. Assistindo aos seus representantes no parlamento, o Brasil se viu diante do espelho. E, pasmem, não gostou da imagem refletida. Prestes a encerrar o trabalho fundamental de mostrar aos brasileiros os desmandos e interesses escusos que correm ao largo dos olhos públicos, a CPI da Covid, no entanto, não irá apontar em seu relatório uma perturbadora verdade: ainda somos uma sociedade misógina, homofóbica e racista.
Vejamos: tão logo teve início o trabalho da CPI, ainda em abril, as indicações dos partidos formaram um grupo de trabalho composto por 18 homens, embora dos 81 senadores, doze sejam mulheres. Ou seja: em uma casa onde a representatividade feminina já é baixa – com apenas 15% dos seus pares, portanto longe de traduzir os 52% da população feminina do Brasil, segundo o IBGE -, a CPI não contaria com nenhuma parlamentar do gênero feminino. Quanto a representatividade de raça, do grupo de senadores homens titulares da CPI, nenhum é negro – embora mais de 50% da população se declare negra ou parda, ainda de acordo com o IBGE.
Não foi sem alguma resistência que se impôs a ideia de uma bancada feminina na CPI da Covid. Sem vaga formal no colegiado, as senadoras se revezaram para fazer perguntas durante as audiências. E o que se viu foram lições de compostura, seriedade e entendimento das matérias debatidas por parte de parlamentares de diferentes matizes políticas, como Simone Tebet (MDB-MS) e Eliziane Gama (Cidadania-MA), para citar apenas duas mais atuantes. Foi à arguição persistente e bem construída de Simone Tebet que o deputado federal Luis Miranda, depois de horas e horas respondendo aos senadores homens, acabou acusando o deputado Ricardo Barros sobre suspeitas de corrupção no Caso Covaxin e abrindo toda uma nova linha de investigação que revelou negociatas com as quais sequer sonhávamos.
“A senhora está totalmente descontrolada”. Foi com essa frase sexista que o ministro da CGU, Wagner Rosário, se referiu à senadora Simone Tebet ao ser inquirido de forma incisiva. Que mulher que nunca ouviu algo semelhante, na tentativa de desqualificar sua opinião? “Quando a mulher começou a buscar espaços de poder, ela começou a ser taxada de ser uma pessoa histérica, uma pessoa louca, uma pessoa descontrolada. Essa palavra não vem à toa, ela está no inconsciente daqueles que ainda acham que mulher são menores, são inferiores”, afirmou a senadora, em sua defesa.
Na semana passada, foi a vez de o senador Fabiano Contarato (Rede-ES) fazer um discurso, arrisco dizer, histórico. Olhando nos olhos do depoente, um empresário suspeito de financiar fake news e que havia deferido ataques homofóbicos contra Contarato em suas redes, o senador deu uma lição de civilidade, elegância e sentimento de comunidade ao aconselhar que o ofensor, mais que apenas à sua família, “deveria pedir desculpa a toda população LGBTQIA+”. E arrematou, sereno e firme: “orientação sexual não define caráter, cor da pela não define caráter, poder aquisitivo não define caráter”. Ao empresário que se define como “cristão”, Contarato usou o lema do governo para ir além: “Deus não está acima de todos. Deus está no meio de nós.”
Por fim, para além de explicitar nosso lado mais triste como sociedade, a CPI presta o importante serviço de reestabelecer à ciência o seu devido lugar de credibilidade e importância. Tivemos o privilégio de ouvir depoimentos de colegas (mulheres!) que nos orgulham do nosso ofício, como a microbiologista Natalia Pasternak e a infectologista Luana Araújo. É à ciência, e mais especificamente à Medicina, que devemos o controle da pandemia com a orientação correta de medidas restritivas e a criação de uma vacina em tempo recorde que, agora, propiciam a redução no número de internados, de mortes e o aceno à retomada da normalidade da vida.
Ausentes do relatório final da CPI por não se tratarem da sua finalidade, todas estas vertentes são fundamentais para melhor entendimento deste país complexo que é o Brasil. Só assim poderemos concretizar o avanço rumo à sociedade mais justa e plena de oportunidade que desejamos.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.