Somos todos Karol Conká?
Isolamento social e consumo de bebida alcóolica se mostraram uma combinação destrutiva dentro e fora do Big Brother
Dentre as muitas consequências cruéis que a pandemia de coronavírus impôs, uma das mais preocupantes é a escalada no consumo de bebida alcoólica. Matéria publicada esta semana aqui no site da Veja Rio chama atenção para o salto na venda de bebidas alcoólicas na cidade em 2020: um aumento de 40%, se comparado a 2019.
+Venda de bebidas alcoólicas no Rio aumentou quase 40% em 2020
Estudo online realizado pela Fundação Oswaldo Cruz com mais de 44 mil participantes reafirma a informação da matéria: 18% da população com mais de 18 anos aumentou o uso de álcool durante a pandemia.
Alguns fatores explicam essa realidade. Um grande estudo realizado nos Estados Unidos mostrou que pessoas que tem problemas com bebidas e enfrentam experiências traumáticas – como é o caso da atual pandemia – passam a consumi-las em maior quantidade. Já os indivíduos que tem o hábito de beber apenas para se aliviar do estresse, também passaram a beber significativamente mais.
Um caminho para interpretar o aumento de consumo é atribuí-lo ao efeito relaxante, porém de curta duração, oferecido pelo álcool. No entanto, não se pode desconsiderar a associação das bebidas alcoólicas com uma gama de transtornos mentais, como quadros depressivos e ansiosos, uma considerável elevação do risco de suicídio, passando por um crescimento de casos de violência doméstica.
O que pudemos observar nos últimos meses é que dependentes de álcool que escamoteavam o consumo ou bebiam apenas em encontros sociais com amigos, passaram a cultivar um perigoso hábito: guardar bebida em casa, sem conhecimento dos familiares. Na outra ponta, os não tinham o hábito de beber em casa ou só o faziam ocasionalmente, passaram a consumir a bebida com facilidade, no conforto do lar. A matéria corrobora o que é notório por quem trabalha com pacientes com transtornos por abuso de álcool: um significativo agravamento dos quadros de dependência.
Duas consequências correlatas ao maior consumo de álcool são a baixa de imunidade e o aumento do número de acidentes, especialmente no trânsito, ocupando leitos em emergências de hospital e aumentando o risco de contágio. Estes fatores ficam ainda mais graves se considerarmos que a pandemia está fora de controle, com um percentual baixíssimo de população vacinada.
A mesma reportagem relata que o número de pessoas que buscaram apoio nos grupos dos Alcoólicos Anônimos saltou de 150 para 400 por mês, desde o início da pandemia. Esta informação permite levantar duas hipóteses: a primeira é que a pandemia mexeu com sentimentos e sensações tão profundas que mais pessoas decidiram pedir ajuda especializada; a segunda é que se há mais gente bebendo, é natural que haja mais gente em busca de apoio, num crescimento proporcional.
O fato é que numa tragédia global que deixou um rastro de traumas, a ampliação do acesso à terapia via internet não deixa de ser um legado de valor: é possível praticá-la com privacidade, conforto e segurança. O fato de as reuniões serem virtuais podem ter ajudado nesse crescimento. Os grupos on-line permitem que o usuário não se identifique, o que diminui a resistência por medo de exposição diante das outras pessoas e acaba deixando todos mais à vontade.
Quando deixou o Big Brother Brasil com a maior rejeição da história do programa, a cantora Karol Conká atribuiu muito de sua animosidade – palavra que usa frequentemente para explicar sua postura no programa – ao confinamento e ao consumo excessivo de álcool. Não pretendo usar este espaço para fazer diagnósticos, independente do eventual transtorno que a cantora possa ter. No entanto, se pensarmos que milhões de brasileiros ainda estão trancados em casa e com livre acesso às bebidas alcoólicas, quanta animosidade de “Karol Conka em potencial” estão espalhadas pelo país? A tempestade perfeita está armada – e sem a válvula de escape do paredão.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.