Trem de aço
Viajar de trem me dá saudade de coisas que não vivi. É também diante de um trem, estando eu dentro ou fora dele, que revejo cenas que não presenciei e histórias que incluem pessoas que nem sempre conheci. Gente esperando na plataforma, dando adeus aos amigos, beijando a namorada, enxugando uma lágrima, mas fingindo sorrir. […]
Viajar de trem me dá saudade de coisas que não vivi. É também diante de um trem, estando eu dentro ou fora dele, que revejo cenas que não presenciei e histórias que incluem pessoas que nem sempre conheci. Gente esperando na plataforma, dando adeus aos amigos, beijando a namorada, enxugando uma lágrima, mas fingindo sorrir. São como muitas imagens que po-voam os nossos sonhos e que, ao nos lembrarmos delas, ficamos em dúvida sobre sua vivência real ou sonhada. Se estou dentro de um deles, imediatamente me acomodo junto à janela, para ver o desfile das pequenas cidades, as crianças acenando, as mulheres suspendendo por um instante o que estão fazendo e assim, com os olhos cheios de sonhos, se postarem nas janelas e nos quintais, suspirando por uma vida bonita como uma viagem de trem.
Provavelmente devo ao cinema algumas dessas lembranças não vividas objetivamente, tantos foram os filmes que vi com o trem motivando o enredo. O mais antigo, que eu me lembre, foi A Besta Humana, extraído do romance de Émile Zola, com Jean Gabin como maquinista de um comboio, testemunhando um crime que não denuncia à polícia por estar apaixonado pela criminosa. Um belo filme com aquelas cenas esfumaçadas em preto e branco, em que os franceses davam uma aula de luz, sob a direção de Jean Renoir. Muitos anos depois foi Hitch-cock que me impressionou com Pacto Sinistro, no qual Robert Walker e Farley Granger se conhecem numa viagem de trem e ali combinam o duplo assassinato que vai favorecê-los. Um terceiro filme, vivo em minha memória, é Breve Encontro, a peça de Noel Coward que David Lean levou para o cinema. Ainda nos anos 50, adaptei essa história para o Grande Teatro Tupi, com Nathalia Timberg e Sérgio Britto vivendo o casal que, após um encontro imprevisto numa estação de trem, inicia uma linda e trágica história de amor.
Uma viagem, qualquer uma, curta ou longa, seja por um meio, seja por outro, sempre nos deixa imagens de vida que ficam para sempre. Mas as que fazemos de trem perduram muito além das outras. Num avião, por exemplo, não temos paisagem. É como se viajássemos dentro de um tubo de ensaio. Num navio existe sempre a monótona solidão do oceano que parece não ter fim. O trem, ao contrário, nos enriquece os olhos e a imaginação, com as múltiplas imagens desfilando diante de nós, como no cinema.
Muitas vezes viajei no “trem de aço”, como era chamado o comboio que fazia o trajeto entre São Paulo e Rio, ainda que o nome oficial fosse Santa Cruz. Quantos enredos foram vividos ali, nas viagens quase semanais que eu fazia para participar do Grande Teatro. Muitas na companhia ocasional do Caymmi, do Cyro Monteiro, da Aracy de Almeida, entre outros. No carro-restaurante rolavam uísque e boas histórias. Fui testemunha de romances que começaram e que terminaram nessas viagens. Quantas lágrimas felizes e infelizes vertidas na madrugada. Numa dessas viagens presenciei a bofetada de uma amante, indignada e raivosa com suposta traição, em seu parceiro. E em meio a essas cenas, quando nos dávamos conta, já era dia claro. Então corríamos às nossas cabines, para um simples cochilo que fosse e que nos devolvesse uma aparência melhor para enfrentar o dia que estava começando. Muitos de nós viajávamos de trem por economia. Outros, por medo de voar, como o próprio Cyro Monteiro, que chamava o trem de “avião dos covardes”.
O que me levou a fazer esta crônica? É simples de explicar, se é que uma crônica precisa de explicação. Estava mexendo em alguns papéis, fotos, objetos, que eu guardo comigo, alguns há mais de cinquenta anos. Numa das caixas mexidas, encontrei um caderno de escola do meu filho mais velho, esse que me deixou há sete meses. E, numa das páginas, reconheço a minha letra numa quadrinha escrita a lápis e a ele dedicada:
Que seus olhos não se cansem
com a vida em seu vai e vem.
São como imagens vividas
de uma janela de trem.
A data é 5 de setembro de 1962. Ele tinha 9 anos, e eu, 29.