Começar de novo
Leia na crônica de Manoel Carlos da semana
Fim de ano.
Começo de ano.
Balanço.
O que ganhamos.
O que perdemos nesse ciclo de 365 dias cheios do inesperado, do inédito, carregados de nascimentos e mortes, de perdas irreparáveis que aparecem para nos derrotar, mas que podem também renovar a coragem que exibimos nos dias ensolarados, nas noites estreladas. Dar um olé no pessimismo e encarar os dias que se repetem, as noites que não escurecem e o lobo que nos encara do fundo do nosso medo e sorri com a ironia de quem sabe que é assim mesmo, fazer o quê? E aquele amor dado como agonizante, terminal, exibe novo vigor, põe roupa nova, faz as unhas, apara o cabelo, e — quem sabe? — ainda dá para fazer uma consulta médica ao clínico, ouvindo boas notícias?
— Colesterol, glicose, tudo em cima. Parabéns.
Você sorri e pergunta com ansiedade:
— Posso beber uma taça de vinho às refeições?
— Uma! E alternando com um copo de água.
Tudo parece mais suave quando passa e vai embora. Mesmo as tempestades, os terremotos, as catástrofes naturais. As tragédias que deixam mortos e feridos. No desastre de Mariana, que mergulhou na água e na lama a bela cidade de Minas Gerais, um repórter balançava a cabeça, olhos compungidos, murmurando diante de um pobre homem, que olhava ao redor, desolado:
— Que desgraça, meu amigo, que desgraça!
— Pois é, o ‘home’ lá em cima exagerou.
E você então percebe que o tal homem a que ele se refere é Deus. Simplesmente… Deus. E que essa história de o homem ser onipotente, onipresente a onisciente é propaganda enganosa.
Bom ano-novo para todos. Fiquem com o sábio poema do Drummond.
PASSAGEM DO ANO
O último dia do ano
Não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
E novas coxas e ventres te
comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
Farás viagens e tantas celebrações
De aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia
e coral,
Que o tempo ficará repleto e não
ouvirás o clamor,
Os irreparáveis uivos
Do lobo, na solidão.
O último dia do tempo
Não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
Onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
Uma mulher e seu pé,
Um corpo e sua memória,
Um olho e seu brilho,
Uma voz e seu eco,
E quem sabe até se Deus…
Recebe com simplicidade
este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar
a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já se expirou, outras espreitam a morte,
Mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
E de copo na mão
Esperas amanhecer.
O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
O recurso da bola colorida,
O recurso de Kant e da poesia,
Todos eles… e nenhum resolve.
Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
Lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal,
sub-reptícia.