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Aquecendo o frio

Faz frio. Em dias assim, aquece contar histórias, trocar lembranças, rindo muito de algumas, de outras nem tanto, mas lacrimejando ao lembrar umas e outras, já que as lágrimas não são exclusividade da tristeza. Minha mãe (ah, sempre ela!), minha mãe exigia dos filhos aquecer o peito, as costas e a cabeça, já que era […]

Por Daniela Pessoa Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 25 fev 2017, 17h26 - Publicado em 1 ago 2016, 21h44
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    Faz frio. Em dias assim, aquece contar histórias, trocar lembranças, rindo muito de algumas, de outras nem tanto, mas lacrimejando ao lembrar umas e outras, já que as lágrimas não são exclusividade da tristeza.

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    Minha mãe (ah, sempre ela!), minha mãe exigia dos filhos aquecer o peito, as costas e a cabeça, já que era só por esses três caminhos (acreditava ela) que chegava a tuberculose, algoz severa naqueles tempos. E, de lembrança em lembrança, sempre inspiradas pelo inverno, acabei revivendo na memória um primo da minha mãe, Álvaro, a quem nos referíamos como Álvaro Grande, não apenas por ter quase 2 metros de altura, mas também por abrigarmos na família outro primo Álvaro, baixo e mais novo, a quem nos referíamos obviamente como Álvaro Pequeno. O Grande era o único da família que não vivia em São Paulo, vivia no Rio.

    Viver no Rio era mais ou menos como viver em Paris ou Roma, aos olhos da nossa ignorância. E, na ingenuidade dos nossos verdes anos, sentíamos orgulho desse primo bonitão, de sorriso largo e acolhedor e que, ainda por cima, vivia no Rio. Enchíamos a boca: ­

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    — O primo da minha mãe mora no Rio.

    O Rio era uma terra de sonho, onde todos eram alegres e passavam o dia a cantar e a noite a se divertir. Estava ali o primo Álvaro Grande, que parecia comprovar essa impressão. Ser carioca era ser feliz.

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    E Copacabana, o Cassino da Urca, o mar, o Carnaval, as chanchadas, os artistas da Rádio Nacional — misturavam-se numa ciranda de sonho. Uma espécie de Disneylândia antecipada. Lembro de alguns fins de semana em que ele vinha do Rio e se hospedava na nossa casa durante três ou quatro dias, a família aos seus pés, feliz com uma presença tão querida. Os parentes espalhados por São Paulo apareciam para um abraço e as conversas familiares iam até altas horas. Ao quarto onde dormíamos chegavam as vozes dos adultos, as risadas que contagiavam, as brincadeiras verbais.

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    Uma dessas brilhantes visitas marcou indelevelmente a minha vida. Numa noite de muito frio, depois que todos se retiraram, fez-se um súbito silêncio em toda a casa. Após um tempo, ouvi um ruído de vozes, um sussurro, um fungar… e me levantei. A porta do quarto ocupado pelo primo Álvaro estava entrefechada e eu me aventurei a olhar através dela. E vi o primo deitado com a cabeça no colo da minha mãe, as lágrimas abundantes, os gemidos sufocados da dor. E vi que a minha mãe — paciente e carinhosa — o consolava com doces palavras, entre as quais se destacava a frase: “Isso vai passar, primo, o tempo se encarrega”. E muitas vezes essas palavras aumentavam o seu choro, como quem luta para não sofrer, mas também para não esquecer. Que esquecer, afinal, é uma das formas da ingratidão.

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    Anos depois, após o enterro do primo Álvaro Grande, que morreu aos 45 anos, soube que ele passara aquela remota noite chorando no colo da minha mãe a lamentar o fim de um romance.

    Então era isso?

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    E tive a consciência súbita do meu espanto, até então inexplicável, ao descobrir que no Rio também se chorava. E de amor.

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