“Paizão”
Uma história ao avesso sobre uma figura fictícia em que todos costumam acreditar
Está rolando com uma amiga minha. Mãezona. Pega as filhas de quinze em quinze dias para passar os fins de semana de sexta a domingo, e fica também um pernoite por semana com elas. Mãe presente mesmo. Vai em uma ou até duas reuniões de pais por ano, e foi também, olha que fofa, numa consulta médica ano passado. O pediatra ficou super contente com a presença dela, uma honra ela ter ido, afinal.
Para você ter ideia de como essa minha amiga é participativa, ela vai à maioria dos eventos escolares das filhas. E faz vários programas legais nos fins de semana quinzenais, sempre capricha, faz viagens, leva para uns parques bacanas. E mais, paga 30% do que ganha de pensão para as filhas, que moram com o pai. TRINTA POR CENTO. Quinze para cada uma. Tem noção?
Agora, para você ver como é a vida. Ao invés de levantar as mãos para céu por ter uma mãe dessas para as filhas – carinhosa, liga para elas quase todo dia, incentiva a leitura, ensina (nos fins de semana quinzenais) a arrumarem direito a cama, colaborarem nas tarefas domésticas, serem mais independentes –, o cara inventa de processar minha amiga. PRO-CES-SAR. Olha isso. Pedindo mais dinheiro e mais colaboração. Vem com mimimi de que os 30% não cobrem nem o valor da escola e que ele está cheio de dívidas e não consegue produzir tanto em seu trabalho (“trabalho”, né, com aspas bem grandes, porque o cara é autônomo e trabalha de casa, vida que qualquer um pediu a Deus, fala a verdade…), já que precisa levar e buscar as meninas todo dia na escola, dar conta da alimentação delas, dos deveres, da educação cotidiana, da higiene, da vida social, dos médicos e exames, das vacinas, do dentista, das atividades extras. Normal né, é pai. E outra, ele tem uma moça que ajuda lá na casa. Então nem faz tanta coisa assim…
O cara era para estar lambendo os beiços, reconhecendo a mãe maravilhosa que as meninas têm. Pensa bem. Ela podia ser ausente, agressiva ou coisa pior, e o sujeito, rei da insatisfação, fica reclamando da vida, dizendo que tá puxado para ele, que quer mais divisão de tarefas, mais equilíbrio nas contas. Gente, na boa, as pessoas não têm limites.
Ele fica chiando que está cheio de dívidas. Ué, a pessoa não se organiza para pagar tudo com o dinheiro da pensão… Ele que baixe o padrão de vida. Sem prejudicar as crianças, claro. E daí que o que minha amiga dá não paga nem a escola de uma filha? Ele acha pouco? Tem mães que dão ainda menos. Ele quer o quê? Que ela use os 70% do que ela ganha, que é o que resta para ela se sustentar, para dar mais alguma coisa para as filhas? E ela, como fica? Vai ficar sem pé de meia? Vai passar sufoco? Ela tem que morar direito, caramba. Comer bem, fazer a academia dela, a ioga, viajar de vez em quando com o marido, ir a shows, beber os drinks dela que ninguém é de ferro, ir a bons restaurantes, socializar, né. Faz parte da vida. Mas o pai, recalcado, fica querendo empatar a vida dela inventando processo e mandando mensagens desagradáveis.
E, na boa, pai bem meia-boca, podia estar educando melhor as filhas. Não dá os limites que tem que dar, de vez em quando sai e deixa as filhas em casa com a diarista e não olha o dever de casa delas com atenção, não tem dado legume todo dia para a menor porque ela reclama e ele acaba mimando e aceita. E pior, tá liberando demais jogos eletrônicos e YouTube, minha amiga sempre comenta. Ela acha um absurdo ele deixar correr frouxo assim. Na casa dela, de quinze em quinze dias, é outra história. As meninas precisam seguir as regras, não tem lero-lero. Minha amiga tenta interferir e mostrar que na casa dele as coisas não estão certas, que ele tem que melhorar muito como pai. Mas ele reage mal, manda resposta antipática, se faz de vítima.
Ela me contou que outro dia ele deixou as filhas faltarem aula, olha isso. Só porque ele estava com piriri e não tinha como levar as duas. Vê bem a frescura. Ela reclamou, claro, e ele veio com o argumento de que pediu para ela levar e ela que não pôde. Também, né, avisou em cima da hora. Se tivesse falado do piriri com antecedência, ela se organizaria. Mas não, ele sempre avisa tudo em cima da hora e reclama que ela não faz nada. Outro dia, por exemplo, o cara ligou no meio da tarde para perguntar se ela podia pegar a filha mais velha na escola. A menina tinha caído e precisava fazer uma chapa do dedo. Fala sério. Ele quer o quê? Que minha amiga saia do trabalho no meio do dia? Claro que ela não foi. Que ideia, achar que pode pedir favor assim em cima da hora. Aí ele buscou a menina e levou para fazer o exame, mas mandou trezentas mensagens reclamando, todo revoltadinho porque perdeu uma oportunidade de trabalho por causa disso. Eu, hein, e o que ela tem a ver com isso?
Ela sempre desabafa comigo e com a família, que, assim como eu, também tomou horror ao pai das meninas, claro. O sujeito inferniza minha amiga, é um ingrato. Mãezona, caramba! Ele fica lá fazendo showzinho, que não tem dinheiro para nada. Gente, pelo amor de Deus, ela paga quase o equivalente a uma mensalidade escolar. Que que ele acha que falta? Alimentação? Transporte? Saúde? Moradia? Material? Atividades extracurriculares? Faça-me o favor. Cara chato, reclama de tudo. Ela dá a mão, ele quer o braço.
Já tem anos que as filhas pedem para ficar com a minha amiga até segunda nos fins de semana maternos. Querem ter mais tempo com a mãe. O pai, claro, espertamente, tenta forçar a barra para que isso a aconteça, deve estar “precisando” de mais tempo para ele. Como se quatro dias por mês (e mais umas noites) fosse pouco. Mas ela já sabe todos os truques, tá safa. Vai empurrando, lógico, se fazendo de desentendida. Até parece que ela vai deixar de ter as noites de domingo para relaxar, sair, curtir o maridão, só para estar mais com as filhas. Ela capricha no sábado e fica domingo durante o dia, tá mais do que bom, né. Fica exausta, e depois tem a semana toda pela frente.
As pessoas não enxergam o outro, impressionante. Só olham para o próprio umbigo. Outro dia ele surgiu com a ideia de dividirem o tempo com as filhas igualmente. Falou que sentiria muita saudade delas, mas que não está conseguindo mais aguentar a sobrecarga física, emocional e financeira. Minha amiga não é trouxa, não disse nem que sim nem que não, para ele não usar isso no processo. Ela sabe que se fingindo de morta as coisas vão ficando como estão. Mas pegaria até mal ele pedir para o juiz para ficar menos com as filhas porque está amarelando de cansaço e falta de grana. Coisa de pai fraco, vamos combinar.
O cara devia pensar pelo lado bom, ver o copo cheio. Mãezona, minha amiga, eu vejo os posts todos, acompanho de perto. Muito melhor que a maioria que tem por aí. E se ele tá incomodado, se tá cansado, segura a onda! É pai, ué. É o mínimo que se espera. Daqui a pouco (uns vinte anos), as meninas vão estar grandes e as coisas acalmam. Passa rapidinho.
Essa história é baseada em fatos reais, mas os personagens (olha que surpresa…) tiveram os gêneros trocados. O pai é, na verdade, a mãe. Tremenda revelação, hein. E a “mãezona” é, na verdade, o “paizão”, figura conhecida de todos nós. Ninguém desconfiou, aposto.
Depois de invertida, essa história poderia ser, e talvez seja, a minha. E de tantas famílias. Mas por alguma razão, não costuma causar impacto.
Fica então um apelo, a todos que trabalham com Direito de Família e, acima de tudo, a todos os que convivem com homens que são pais, para que tomem consciência do quanto podem estar sendo omissos ou cúmplices desse sistema atual. Lembrem-se: o que vale para o seu filho que é pai, vale para o seu genro, pai de seus netos. O que vale para seu irmão, vale para seu cunhado, pai dos seus sobrinhos… Como fica sua filha? E sua irmã? É esse o tipo de paternidade que vamos continuar endossando? E mais: atenção mulheres! Os maridos de hoje são, muitas vezes, os ex-maridos de amanhã… Mais amor, empatia e solidariedade, gente. Mais noção nessa vida.
E, aos pais que me leem agora, uma dica: não precisa ser “paizão”, basta ser pai. A gente vai curtir, mesmo sem você postar.